sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Das Coisas Primeiras e Últimas

Nietzsche está na moda — que lástima. É imperioso reconhecer que não vivemos um tempo em que haja leitores para o Frederico; quiçá houve algum dia. Duvidamos ainda que hoje ocorram leitores, seja qual for a espécie. Codificar símbolos não torna ninguém um "leitor" — no sentido que aqui quero imprimir. Um computador faz o mesmo. O mero trato da técnica; o privilégio conferido aos "conhecimentos técnicos": como cheira mal este nosso tempo!
Pois bem. Ainda agora ocorreu-me um sentimento de falta, uma lacuna, oco no peito: lendo sobre novas fronteiras da astrofísica, senti falta de um pensador que, tal qual Nietzsche, escreva suas impressões sobre a ciência, as "coisas primeiras e últimas", da nossa era com a mesma liberalidade e espírito curioso e especulativo. Quem conhece suas obras, sabe como acertaram em algumas previsões, mirando a flecha bem no peito do futuro. Um caso que talvez seja simbólico deste fenômeno é a sua antevisão da navegação aérea presente, salvo engano, na "Gaia Ciência" (1882).
A humanidade ainda patina no gelo; o despertar, o florescimento da consciência humana é um fenômeno recentíssimo. Medindo por uma escala que tem por predefinição toda a história humana sobre a Terra, os últimos séculos, em que se vive uma perene batalha (por vezes sangrenta, inglória...) pela iluminação, não são mais do que o breve instante em que abrimos os olhos pela manhã — após uma longa madrugada. A "história humana" mesmo é algo que acabou de nascer: até bem pouco tempo atrás, a "humanidade" era uma concepção totalmente diversa do que a usamos aqui. 
Os recentes acontecimentos no mais que trágico enredo da vida social e política deste país me fizeram recordar do conceito nietzscheano de corrupção — como um fenômeno de degeneração dos instintos, quando os indivíduos e. em maiores escalas, as comunidades e os povos, elegem para si aquilo que precisamente lhes faz mal. E este "mal" é algo fisiológico: de modo geral, se refere à uma escolha ruim para a dieta de nutrição física/alimentar e mental/intelectual; toda espécie de vícios e maus hábitos, etc. Este é o saber do decadént: reconhecer em si a corrupção dos instintos e tratá-la a partir da experiência — nisso já se gasta toda uma vida. A "surpresa": todo o frágil tecido retórico que se revelou vitorioso em nosso território foi costurado com base na "luta contra a corrupção". Talvez seja a voz do corpo — deste instinto mais profundo, o soberano operador da máquina-homem — falando mais alto: mas, como estão corrompidos os instintos, o corpo e suas partes não se entendem... miram no alvo, mas atiram no próprio pé.
Tenho visto um pouco aqui e ali uma nova corrente da psicologia, o behaviorismo radical. Bem, eu ainda releio o "Aurora" e a "Gaia Ciência" sempre que me adoeço: é, desde que os descobri, meu melhor remédio. E um novo corpo nasceu de mim mesmo a partir de uma radical dieta de uma nova música, hábitos, alimentos, companhias e livros. E a saúde, em mim, transborda como música. Mas quem sou eu para receitar algo para a humanidade? Não me é dado ser o alienista desse hospício! Já o dissera:

♪ Eu passo a minha humanidade adiante
Posto que a minha fonte é incessante
Apesar de minha espécie estar em extinção
Sou mais raro ainda a cada estação ♫

domingo, 14 de outubro de 2018

O Aprendizado do Mar

Nós já chegamos no limite de ter de pedir desculpas às pessoas no facebook, nos grupos de WhatsApp, por tentar demove-las da sua orgulhosa ignorância. Talvez a nossa paciência já tenha ido embora, restando uma angustiada arrogância. Há uma enorme onda: você não a enfrenta; mergulha fundo e deixa ela passar por cima, ela vai morrer ali na frente mesmo. É assim desde que o mundo é mundo. Só precisamos ter fôlego; prender a respiração: calar a boca!

É parte da vida discutir sobre as questões comuns, que afligem à humanidade. Nós só nos tornamos o que somos assim. É por isso que o Roger Waters atravessou o mundo pra tomar vaia de classe-média latino-americana, porque a gente não vai deixar de falar as coisas que precisam ser ditas. Mas há momentos em que não adianta falar nada, o discurso mais eloquente vai soar como um convite à batalha, não à compreensão. E aí é bom saber a hora de se calar e deixar as coisas fluírem como são... o que for pra ser será. Pode demorar o tempo que for. Por isso a analogia com a onda: não depende da minha persuasão crítica, da minha razão, enfrentar uma onda... devo me adequar à ela, ela passa logo e se desmancha na praia: aprendizado do mar!

O Homem do Conhecimento

A técnica surge bem antes da tecnologia; a teoria, bem depois da prática. Isso devido ao fato de, na história humana, a "necessidade" surgir bem antes da "racionalidade". Daí decorre que o intelectual "objetivo" é algo muito tardio, incompreensível, talvez até supérfluo para a maioria dos homens comuns. E a bem da verdade, o "intelectual objetivo" ainda é um degrau abaixo do homem do conhecimento. Este chega cedo ou tarde, perdedor ou vitorioso — é dado da história. Quando coexistem em harmonia e em condições favoráveis, esses dois tipos elevam a condição humana — o que é raro. Talvez, o "conhecimento", a descrição objetiva já não seja algo assim tão urgente agora, que a humanidade é tomada por uma febre de odiosa ignorância. Que tipo de humanidade é chegada a vez? A do homem do conhecimento, o criador: que prescinde, ou melhor, intui a teoria, forja a tecnologia com suas técnicas; cria o novo com suas práticas, ao longo da tentativa e erro. É chegada a vez do homem do conhecimento: é a hora de errar, de lutar e de perder para aprender. O intelectual objetivo o seguirá para, assim que possível, compilar sua suma no Estado da Arte das coisas humanas, em seu trajeto da escuridão à luz.

quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Partido? Pra Bem Longe

A produção simbólica é o que é, flui através de cada um de nós. No meu caso singular, a música...
Este é um ska(zinho) de melodia simples cuja letra é toda do meu grande amigo shakespeariano, intelectual humanista de larga envergadura, Leonardo Afonso (O texto que a deu origem está aqui: https://leosfera.com/rapidinhas/). A (auto)ironia, os duplos (quiçá triplos) sentidos, o desprezo e a crítica sutil contidos nestes versos, aliada à estética minimalista da música, tornam-na desde já num clássico desta surreal primavera, véspera de mais uma "festa da democracia" — que mais está para velório, é verdade —, de 2018.

OUÇA-A AQUI!

"Partido (Pra Bem Longe)"
[Leonardo Afonso/Juliano Berko]

Eu queria ter partido... Partido pra bem longe
Eu sonho com um país melhor, qual, eu não escolhi ainda
O meu voto nestas eleições... vai ser um voto de silêncio
Pois, ando bem mais abatido do que o avião do Teori Zavaski

Acabemos com as aulas de História... Ninguém mesmo tem prestado atenção
Agora que a moda é a pós-verdade, só dela pra fazer uma Comissão
A sociedade incensa o individualismo, mas não respeita as individualidades
Não sou louco, só tenho ideias peculiares sobre a natureza da realidade

Vamos fazer o Brasil parar! ... Que agora eu quero descer
Eu não misturo esporte com política, é a polícia que me bota pra correr
Se um dia estive me sentindo um trapo; hoje, já estou um fiapo
Já não quero por meus planos em marcha; eu só quero por meus planos em valsa

We asked for a fair law… then we get lawfare
A flight of fancy you can’t hijack— now, what’s left of the left?
Eu não leio a Constituição porque prefiro ficção melhor
As instituições estão funcionando… Exatamente como quer quem as sequestrou

Como tá a guerra? Recrudescendo; Como tá o autoritarismo? Se estendendo;
Como tá o Ártico? Derretendo; E como tá você? Tô me fudendo
Socar ponta de faca é para os fracos: dar nelas cabeçada é minha sina
O curso dos acontecimentos, por mais que não dê diploma, é o que mais ensina

sexta-feira, 22 de junho de 2018

(Alg)uma (nada) breve história sobre Juliano Berko — Parte II

Em um esforço para rememorar minha própria vida — fazemos isso quando somos compelidos a ver sentido, enxergar alguma ordem no caos... — relia alguns textos que publiquei aqui, este quase-diário virtual. Fui surpreendido ao reler esta breve autobiografia, publicada há 5 anos, e ler coisas que eu, hoje, já nem lembrava. Tomado de sentido histórico, retomo agora o desenvolvimento daquele enredo com os fatos de 2010 que por ora puder me recordar. 
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O ano de 2009 foi de muita passionalidade para mim — eu me encanto com a UnB e com Brasília, comigo mesmo e minha música e, apesar de todos os esforços, mentindo para mim mesmo, descobri que não era possível "desapaixonar" de alguém especial, aquilo que Jung chamou de anima... — e entro em 2010 transbordando. Eu tinha 20 anos: nessa idade é necessário que se cuide para que não se percam as grandes ilusões, os mais elevados ideais... Desilusões dessa espécie nessa idade são letais.

Neste meu período na UnB, descubro a felicidade da fruição da minha própria força, do meu próprio corpo: começo a participar, inicialmente, da disciplina de "prática desportiva/modalidade: caiaque" e, em outros semestres, das oficinas de caiaque comunitário. Eu já ia de vez em quando no Centro Olímpico da UnB na hora do almoço, esperando a fila do R.U. diminuir enquanto eu nadava no Paranoá, portanto, quando consegui a vaga na disputada e famosa disciplina de então, eu agarrei a oportunidade. De modo natural, ganhei a confiança do professor Tadeu, que me convidou para ser monitor da disciplina no semestre seguinte (2º/2010). 

Enquanto isso, continuei a compôr com ainda mais paixão que antes. Escrevo meus últimos poemas neste período. Assumo que sou um compositor, não mais sairiam de mim palavras que não fossem acompanhadas por música. É neste momento em que eu sintetizo minha produção dos anos anteriores na forma de 3 ou 4 álbuns, todos editados em 2010: "Lívido" e "O Poder Da Poesia", com canções desde 2005 até 2009 e poemas da safra de 2007 musicados em 2009; e "Fuga" e "Outro Mundo é Possível!", em sua maior parte escritos e compostos em 2010, representando o espírito dessa época.

Ainda em 2009 eu havia escrito "Volto a Pé do S.B.S.", um desabafo pueril de um entrevistado em estágio. Eu adorava a UnB, mas reconheço que não sabia muito bem o que eu estava fazendo por lá... Na falta de total orientação de como proceder em uma universidade, fui aprendendo com a experiência... há sempre algum desperdício de recursos nesse processo. Com o timing das eleições, o crescimento chinês do nosso PIB, a grande hegemonia política do Lulismo no debate público, o onipresente marketing político, eu retomei o projeto do "Concreto Armado", assumindo que esta seria genuinamente uma 2ª fase, mais madura, em tese. Escrevo "Outro Mundo..." nessa toada, inspirado nos movimentos de esquerda do novo milênio, nas grandes esperanças políticas que foram semeadas nos corações da minha geração — que o tempo varreu como o vento varre pó...

Ainda ouvia muito rock, mas com variações de estilos bem abrangentes. "Fuga" é um álbum de rock progressivo que ainda hoje me impressiona; tal qual mãe de homem formado, me pergunto: "como algo tão grande saiu de dentro de mim?! Como isso, que pulsa por si só, um dia bateu com meu coração?!"

Apesar de tudo, minhas esperanças na formação de uma banda e na organização de um processo seletivo de artistas da geografia para tocar no FINCA novamente foram grandes frustrações deste período. Também no aspecto mais íntimo e familiar, grandes, incontornáveis desgostos vinham à tona. Chegamos em 2011 e a sensação era de que eu tinha queimado a largada, gastado todo o gás. É neste ano que reconheço pela primeira vez em minha vida a depressão.

Era o meu instinto de saúde como o é ainda hoje: nos contextos ambientais mais desfavoráveis eu me impunha uma rigorosa disciplina do corpo — exercícios e dieta. Isso, se não impedia, ao menos retardava a instalação da depressão. Pois bem: eu ainda não dominava conscientemente estes processos, não conhecia as variáveis todas. Aprende-se a viver vivendo. Ansiando sempre por algo que não tenho em minha vida e que talvez nem possa consubstanciar-se em algo, eu me enfadei! Como é difícil superar o cansaço consigo mesmo, quantos duendes pululam ao nosso redor nesse momento! 

Já era reta final do curso e eu não sabia o que fazer. Só descubro em 2012. Eu me alimentava mal, não compreendia o básico de nutrição, o que certamente contribuiu para que eu tivesse uma distensão da minha coxa (Viram? Nem sei o nome dos músculos! Não me ensinavam isso meus professores de educação física...) direita, numa arrancada que dei para baldear na rodoviária do plano. Eu fiquei por volta de um mês acamado, entre maio e junho, se não me engano. Antes disso eu havia me resfriado por duas vezes dentre um mês. Eu estava triste comigo e com minha vida! Por um breve período, por volta de alguns meses, até mesmo no cigarro careta da indústria do tabaco eu procurei abrigo: abrigo de mim mesmo! Minha tarefa: eu fugia dela e isso me dilacerava. Minha imunidade estava ruim. Como isso pode ter mudado tão rápido, se antes eu estava apaixonado? É que nada mudava no contexto da minha vida. 

Não sem razão minhas lembranças desse ano são soturnas. Em novembro eu fazia cursinho para concursos. Era um novembro coberto por uma espessa névoa após o retorno das chuvas. Eu busquei aliviar a tensão interna sintetizando o "Concreto Armado" e o "Juliano Berko" em um mesmo álbum: "Orgânico" tragicamente soou forçado e pedi desculpas a mim mesmo. "Vão-se os anéis, ficam os dedos", diz o refrão mais digno dessa época. Eu queria me despedir da vida, me desligar de todos os contatos, começar tudo de novo. Tentei fazer isso no Natal. Por uma ou duas semanas eu fiquei ainda pior, isolado do mundo em meu quarto. Comecei a entender que não me bastava apenas dar "adeus!" à uma pessoa específica. Eu precisava estabelecer uma efetiva autonomia para minha vida. Portanto, estabeleci comigo mesmo um compromisso para 2012: reatar o namoro em outras bases, focar em uma produção acadêmica factível para poder me formar, adotar hábitos saudáveis para bem cuidar do corpo, o único templo que existe. 

A chama de uma nova esperança ardia em meu coração. Contudo, mesmo no calor de um coração quente, um verme roía suas paredes: havia algo indizível, inexprimível dentro de mim. Eu descobri o prazer de correr, perdi bastante peso, mas no fim do ano sofria de dores terríveis no joelho. Escrevi minhas 70 páginas de monografia, que não era nada de novo nem que acenasse para uma especialização, porém, na forma consagrada do pensamento científico, pude vislumbrar o que há de singular em uma produção dessa espécie. Eu estava saudável e feliz, eu me preparava para dar um salto: mais que isso, eu havia recuado alguns passos, para dar um grande salto adiante. Pleno dessa certeza, eu pari 2 gêmeos robustos e saudáveis: "Indizível" e "Futuro, Adeus!" (talvez a única grande produção sob a rubrica do "Concreto Armado"). 

Na hora do salto, no grande dia, eu levo uma belíssima rasteira da vida... Uma novidade que me arrebatou ao chão e colocou tudo o mais em minha vida em segundo plano. Contraditoriamente, era a chave que abria a porta da casa da minha mãe para o mundo: eu comecei a ser dono da minha própria vida. Já diplomado, aproveito um semestre sabático para estudar para concursos. Passo nas provas para professor (temporário 2013/2014 e efetivo) sem o menor esforço. O primeiro salário na minha conta: recompensa por me sequestrarem 36 horas da minha semana enjaulado numa escola. O trabalho me impacta de modo profundo. Eu me sinto traído pelo mundo. Eu, que era um jovem com todo o tempo do mundo e sem nenhum centavo no bolso, de um hora para outra sou capturado por uma obrigação contratual terrível, impositiva, violenta e assustadora, pois, indispensável: o trabalho. Logo de cara o que quer que havia de ilusão com relação ao meu emprego foi embora. Eu em encaminhei para a educação por um único motivo: a minha música não tinha para onde fluir... Como todo professor, o primeiro mês de serviço era repleto de pesadelos com o motivo escola. O primeiro ano é sempre horrível. Mas fazia o que eu conseguia, o que eu podia, com um senso pragmático muito claro: eu tinha uma filha vindo ao mundo e eu queria dar à ela as condições propícias para o desenvolvimento das suas plenitudes. 

No confronto entre trabalho, paixão, vida afetiva e sexual, família, boletos e vícios, era óbvio para qualquer um que algo em mim sairia perdendo... 2013 foi o último ano em que eu componho mais de um álbum. Era junho e tudo aquilo que estava acontecendo e que eu estava sentido me subiu a cabeça. Ainda subjetivava a música de forma dissociada: política e afetos são diferentes... mas já desconfiava que não era assim, na verdade, que a vida psíquica poderia ser diferente. Quando eu componho eu acesso algo que não é visível a ninguém, atinjo um estado elevado de consciência, no qual nada mais importa, não há mais dor ou prazer, há plenitude... Portanto, pari outros 2 gêmeos robustos, mas mais pessimistas, é verdade: "O Mundo do Trabalho" e "Aeternum Phoenix". 

Eu vivia extremamente angustiado. Portanto, além dos velhos maus hábitos, adquiri alguns novos vícios. Tive uma ferida na boca que não sarava. Durou longos 6 meses. Um dia fui na odontologia do posto de saúde próximo de casa para ouvir de uma incrédula odontóloga de olhos perscrutadores que era só eu parar de passar a língua na afta que ela desapareceria. Eu me senti ridículo: por que eu não pensei nisso antes? Será que eu estou tão imerso em meus problemas que nem meu corpo eu escuto mais?! Pois a afta desapareceu. E nunca mais retornou. Uma parte desta ansiedade se dissipou com o nascimento da Aurora: todo o simbolismo desse momento é incomunicável e eu não vulgarizaria algo tão sagrado para mim. Era como se o sol nascesse diante de mim: um sol que me iluminava novamente! Eu não posso me esquecer do júbilo excelso que experimentei apenas sentindo o calor do sol na minha pele em um santo dia! Eu, que ideava o suicídio diuturnamente neste período, buscando auxílio profissional de uma psicóloga (mas ela era linda demais, me dava tesão demais, não funcionou... já falei disso aqui), entendi que deveria ir até o mais profundo, encarar corajosamente meus medos: a escuridão se dissipou! Tudo tornou-se mais sereno. Eu tornei-me mais forte. Eu retomei o controle de minha vida e refiz meus planos. Não era nada como eu havia sonhado, mas o trabalho, este grande monstro, me dava condições objetivas de fazer planos para minha vida. 2014 foi, então, um ano pragmático, de traçar metas e prazos e escolher métodos para encaminhar minha tarefa. Vejam só! Eu tornei-me amigo da minha tarefa! Eu passeava com a minha sombra, dançava com ela, chorava com ela, transava com ela... Muitos mistérios revelaram-se para mim desde então. Eu escrevo "Prometeu" sob este signo. Eu pari o meu filho mais feliz, "Além de Mim" neste sereno ano. 

Os últimos 4 anos de minha vida foram seguramente os mais livres e plenos de minha vida, apesar dos rodeios da minha saúde mental, como se pode perceber ao longo deste relato mesmo, muito frágil. Silencio por ora. "Devemos falar apenas do que não podemos calar; e falar somente daquilo que superamos — todo o resto é tagarelice, "literatura", falta de disciplina.", já sentenciava um majestoso alemão em setembro de 1886, cuja citação deixo como belo ocaso para findar este capítulo da história.

"Meus escritos falam apenas de minhas superações: "eu" estou ali, com tudo que me era hostil, ego ipsissimus [meu próprio eu], até mesmo, se me permitem uma expressão mais orgulhosa, ego ipsissimum [meu mais íntimo eu]. Já se adivinha: eu tenho muito — abaixo de mim... Mas sempre foi necessário antes o tempo, a convalescença, a distância, até que em mim nascesse o desejo de explorar, esfolar, desnudar, "apresentar" (ou como queiram chamá-lo) posteriormente, para o conhecimento, algo vivido e sobrevivido, algum fato ou fado próprio."

(Nietzsche, "Humano Demasiado Humano II", Prólogo, I)

A Morte Como Um Preconceito

A morte como um preconceito — Bem mais de uma vez na vida já se ouviu falar assim: "Se este morto realmente valesse tanto, não teria morrido desta forma (jovem, doente, louco, etc.)!" — Quando, para o bem da verdade, cada época e lugar estabelece critérios próprios para valorar o tipo humano, sendo que o ponto final da vida é um signo deste valor. Dada a forma e contexto de cada morte o destino pode ser tido como grande ou desprezível — a depender dos valores que cada cultura cultiva. Hoje, muitos conservadores ainda travam sua batalha contra nossa modernidade decadente utilizando sua última arma: caluniando mortos. Sejam eles os aidéticos, os drogados, os suicidas, os gays — cada morte proscrita é uma alusão à medíocre vida prescrita

O caso Frederico — Frederico morreu louco na indignidade do leito da sua família, tendo pregado a "morte livre, que vem quando eu quero". Simplesmente, ele era alguém que nasceu cedo demais. Houvesse nascido um século e meio depois ele viveria a época do amor livre e os antibióticos: tudo o suficiente para uma vida mais plena para um homem do seu tipo. Compreendendo este impedimento no seu contexto para a satisfação de sua vitalidade, escolheu perecer. Moral da história: a vitalidade mais elevada, entalhada em orgulho, busca seu ocaso caso o mundo não ofereça as condições mais propícias. "Os medíocres duram mais" — já foi dito em 1886!

O Que Há De Mais Cruel No Mundo

1. O que há de mais cruel no mundo: não poder-se mais chorar em público sem ser importunado pelos corações compassivos e seu veneno: uma inconveniente atenciosidade: "O que aconteceu? Posso te ajudar em algo?". 

2. No fim das contas, é uma forma de enfraquecer aquele que sofre: "Não te tornes duro demais! É bom sentir-se injustiçado, nos torna indulgentes com nossas próprias falhas!"
 
3. Uma pessoa orgulhosa deveria expulsar os compassivos de um golpe só: "Que te interessa se carrego uma cruz? É a minha cruz! Tu, compassivo venenoso, não tem nada o que ver com ela! Não teria forças sequer para ouvir a sua descrição, contemplar tua grandiosidade, muito menos para carregá-la! Reduza-se a sua insignificância! Minhas lágrimas e soluços são mais férteis que teu balbucio bajulador!"

4. O compassivo se vinga dos orgulhosos: tornam-se sacerdotes, apelam para o "sentimento de uma moral superior". O sacerdote quer criar culpas e culpados; o compassivo, sofrimento e sofredores.

Da Natureza Da Inveja

Quando a admiração encontra um obstáculo, tomba e não consegue mais se levantar pra seguir seu objetivo — o objeto admirado — ela se vinga: transforma-se em inveja.

A Mais Honesta Pessoa

Assim fala a mais honesta das pessoas: "O que me ofende? A verdade. Quem me ofende? Quem fala verdades para ou sobre mim."

domingo, 13 de maio de 2018

"Espelho, espelho meu, existe alguém mais sensível do que eu?"

1. Muitos desinterpretam a defesa da hierarquia feita por Nietzsche. Esquecem ou omitem ou desconhecem que no topo da hierarquia, para ele, está quem é mais sensível à dor, quem sofre mais profundamente. Logo, não é uma defesa de um tirano bruto, mas de um líder empático.

2. Da mesma forma, ele defende a imprescindibilidade de alguma forma de escravidão: para dar aos brutos e estúpidos o seu devido lugar, para que eles sejam úteis, ganhando, assim, o direito à existência. Sendo que a inversão destes papéis na sociedade não é nada mais que sinal da corrupção ou, em linguagem física e não moral, degeneração dos instintos.

3. Logo, ele toma o partido da nobreza. Mas, não da nobreza de direito, por assim dizer ("não daria ao imperador o privilégio de lustrar minhas botas" ele diz em seu "Ecce Homo"), e sim de uma nobreza de fato, que domina a si mesma e aos seus afetos, de instintos mais puros, sensibilidade refinada, etc. Daí podemos fazer elucubrações diversas: este homem de nobreza superior, que ainda não existe, é a "alma do homem sob o socialismo", o "homem novo", de um certo-mundo-pós-alguma-espécie-de-revolução. Nietzsche é um "revolucionário", num sentido lato: está ciente que participará, ainda que indiretamente, de uma monumental colisão de consciências por vir. Um "guerreiro", com toda certeza.

4. O instinto democrático seria o resultado da mistura de sangue das diversas "castas" ao longo dos séculos, cujo resultado será uma eterna contradição, que tende ora para uma hipócrita liberalidade, ora para uma tenebrosa tirania. Dito isso: não há censura alguma à mistura de raças, ele toma isso apenas como constatação; partindo daí para um aprofundamento das variações de tipos humanos. O nazismo querer elevá-lo à condição de mentor teórico é uma desonestidade histórica triste que nunca descansaremos de lutar contra!

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Fórmula da Dialética

O idealismo prega:

— "As ideias precisam ter força!"

Mas uma lente mais objetiva revela o que o preconceito do idealista esconde:

É a força que precisa ter uma grande ideia!

Essa mudança de perspectiva se materializa em uma efetiva mudança da práxis política.

domingo, 1 de abril de 2018

O Pathos de Cristo, Um Prometeu Invertido

1. A confusão da linguagem como marca deste nosso tempo [este triste e pobre tempo... em que nem todos são tristes e pobres: há abundantes alegria e riqueza de espírito — para os raros!]: as coisas e os fenômenos nem sempre são chamados por nomes que exprimem aquilo que eles efetivamente são

2. As grandes religiões, o que as diferem dos sistemas de crenças e ritos dos povos tribais, das pequenas, dispersas e extremamente diversas seitas que ainda povoam o mundo? 1) A necessidade de organização da psiquê das massas, de modo que minimamente se compreendam ("comunguem") em relação aos seus afetos; 2) a construção de uma normatização e padronização do comportamento social a partir do condicionamento psíquico e do exercício e ensino de uma determinada moral; 3) os mitos — descrevendo e narrando as experiências típicas de diversos arquétipos — reduzidos a uma interpretação, uma exegese pré-estabelecida e acordada entre os poderosos de dada sociedade; 4) interpretação esta que será objeto de constante e minucioso exame [O que são as faculdades de teologia? A hierarquia de poder do império erigido pelos católicos?] — é preciso que haja de tudo no espírito humano, menos fé, para se debater as minúcias dos sacramentos!; 5) cumprindo, enfim, a função de aprisionar a experiência mística ao contexto político dos sacerdotes. 

3. Uma geografia da religião: Quem afirma, hoje, que um culto de qualquer que seja o credo, ou mesmo que o hábito da frequência aos eventos religiosos  "religa" as pessoas? Em cada contexto, isto serve, isso sim, para tornar as pessoas 1) gado dócil e estéril aos filhos da  miséria material extrema (o sacerdote como toureiro e emasculador); 2) toleráveis umas às outras aos ascendidos (e descendidos) à média material e cultural de uma sociedade (o sacerdote como juiz de paz); 3) e, por fim, autoindulgentes à elite econômica que, completamente ciente do profundo mal estar que causa na sociedade como um todo, sente-se, assim, regozijada em crer que o mundo deve mesmo girar ao seu redor (o sacerdote como psicólogo — sempre muito bem pago!). Logo se vê que há um espaço e um tempo para a religião, seja ela qual for, sempre adequada à ocasião.

4. O que é uma igreja? Uma fábrica de produzir mistificação da realidade fática e embotamento dos simbolismos arquetípicos. 

5. Quem é o sacerdote? Um mitômano invejoso, quando não com profundo ódio — de nós, os espíritos livres. Bem sabemos disso! 

6. E quantas vezes nos acorrentaram no Cáucaso pra expiar esse rancor da vida? Orgulhosamente acorrentados à rocha, louvamos à verdade e a vida. Ou, para falar na língua franca, em quantas cruzes já não nos pregaram? Quanta sibéria, silêncio obsequioso, masmorras de castelos e porões de ditaduras? Findo o sofrimento, dele sempre renascemos: esta é a boa-não-tão-nova verdade que vos digo; dela são raras as testemunhas, somente uns poucos e bons amigos — que sobre ela saibam guardar segredo: assim se mantém mais pura a fonte de todo espírito

7. Toda vez que eu roubo algo dos deuses para dar aos homens — o mesmo caminho faço com algo que roubo dos homens para dar aos deuses. Assim no céu como na Terra.

terça-feira, 13 de março de 2018

Nas Areias do Tempo

Com esforço, delicadeza, dedicação, "tudo aquilo que se chama amor", construímos algo superior, um abrigo, uma fortaleza e um castelo — nas areias do tempo. Uma onda, um vento mais forte, uma chuva, torrente de desejo passional sem controle — e tudo se vai! Melhor mesmo, como clamam os idealistas, construir nossos castelos em nossos sonhos? Ora, foi isso, esse castelo e essa onda, a vida? Que construamos tudo de novo mais uma vez!

domingo, 11 de março de 2018

O Voo da Galinha

Não interessa quanto esforço uma galinha coloque ao alçar seu voo: ela nunca voará muito mais alto que um poleiro e, no fim das contas, terminará cagando em algum pau.

sexta-feira, 9 de março de 2018

Realismo Como Rendição ao Idealismo dos Poderosos

Pelo direito de não sonhar o mesmo sonho — Até que ponto o "realismo" não é, ao fim e ao cabo, apenas um signo orgulhoso com o qual batizou a si mesma a rendição ao idealismo dos poderosos? Também os seres humanos mais monetizados, para não dizer ricos; mafiosos, para não dizer líderes políticos do status quo, raramente são outra coisa que não indivíduos articulados com outros de interesses afins, padecendo de visões estreitas, falta de imaginação, afetados por covardia, vaidade, oportunismo, etc. Este é o verdadeiro realismo: política é a arte da guerra pelo direito de cada qual organizar a sociedade de acordo com o seu sonho. E a cada qual agradam sonhos diversos: os brutos e toscos, sonhos de uma ordem militar total da sociedade; os pequenos e fracos, uma democracia dos pequeninos interesses; os suaves e modestos, uma aversão solitária ao estado e ao mercado; os de sofrimento profundo, de profunda sensibilidade e inteligência mais afiada, que amam não o que o ser humano é, mas o que ele pode vir a ser, abraçam a vida na sua total frugalidade: querem tudo e que o "tudo" possa ser para todos, de modo que possamos elevar a percepção dos que não possuem aquelas nossas características ao nosso nível da compreensão da "realidade", às nossas regras do jogo, uma jubilosa beleza como ideal de sociedade que educa para a liberdade — em uma última palavra: os raros sonham os sonhos mais raros.

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

Canção do Auto-Exílio




"Canção do Auto-Exílio"

Minha terra teve ouro,
Onde hoje já não há;
Gorjeiam aves de agouro,
Por ora, a sorte é má

Nosso céu tem mais fumaça
Nossas várzeas mais esgoto
Nossos bosques, mais um corpo
Nossos jovens, mais um morto

Em andar, sozinho, à noite
E em toda esquina encontrar
A antessala do fascismo
Nossa “República de Weimar”

Minha terra tem horrores
Que não mais quero encontrar
Caminhar no escuro, à noite
Pagando pelo prazer lá
Minha terra tem tristezas
Que o peito tem de aguentar

Não permitirei que eu viva
Sem que eu veja o que há,
Sem viajar, na vida alhures
Outros modos de ser e estar
Que eu viva longe da neurose
Num lugar que eu possa amar

sábado, 10 de fevereiro de 2018

Preconceito dos "Inteligentes"

Preconceito dos "inteligentes": desconfiar que a ignorância é má vontade para com a inteligência, e não falta de inteligência mesma.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

O Sacrifício do Primogênito

Bem mais de uma vez na vida eu vi sacrificarem o(s) seu(s) primogênito(s) em nome de um ideal de si mesmo. Ter no mundo um filho: daí fala a voz gutural, a mais profunda e tenebrosa que alguém pode sentir dentro de si e que nos impulsiona, compele, obriga, subjuga diante de uma meta, um desafio, uma "necessidade férrea". Depois de vencidos os desafios, cumpridas as metas, satisfeitas as necessidades (que já não se apresentam assim tão férreas) — o sacrifício já está feito, não nos é dado lamentar ou nos arrepender: há que se seguir adiante. Em outras palavras, as gerações vindouras são fiadoras da coragem, no fim das contas, de criar um novo mundo (um novo universo psíquico na mente dos pais, por conseguinte, uma nova realidade de relações de produção da materialidade da vida, etc. etc...). Essa conta — pagamos com amor.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2018

Feliz 2018

A: Essa é a urna do meu pai...
B: E onde fica o buraquinho pra colocar os votos?
A: É uma urna funerária! As cinzas do meu pai estão nela!
B: Mas onde está o buraquinho pra colocar os votos?!