quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

No Mercado Público da Vida

Hoje, observando Aurora numa loja, admirada com brinquedos para bebês, alguns dos quais ela mesma já teve, tive uma epifania: ela, que já não é uma recém-nascida, senão, uma criança que se prepara para despedir-se da primeira infância, tomou aqueles brinquedos nas mãos com um pathos - longing, em inglês, na falta de expressão mais precisa no momento - de quem superou uma dificuldade - todo bom brinquedo deve apresentar uma dificuldade à criança, adequado a cada fase do desenvolvimento do intelecto - e olhava para ele admirada com a sua própria força e inteligência, de descobrir o que faz certo botão, "o que acontece se eu apertar aqui?", de perceber padrões: "esse brinquedo eu não conheço, mas se parece com aquele que conheço: devo apertar algo colorido aqui para ouvir um barulho divertido", a alegria de perceber cores e sons: estímulos aos sentidos, etc.; um proto-orgulho de conhecer, assim dizendo. 

Ora, não é isso o que fazemos todos, no mercado-público da vida? Às vezes nós mesmos, talvez para sempre e em cada época da vida, não tomamos nas mãos algo conhecido; não damos um passo atrás para recuperar um pouco do nosso orgulho, talvez estimular a nossa coragem a seguir em frente: "veja só, eu mesmo, fui capaz de superar tal desafio, que me apavorara, e o resultado disso - surpresa! - me alegrou! Vamos fazer de novo?! Então vamos!"?

Para o eterno-retorno: amor-fati.

Kairós

1. A hora certa de parar de beber I: quando prescindimos de álcool para chorar.

2. A hora certa de parar de beber II: quando a intoxicação não mais aflorar a percepção dos sentidos, pelo contrário, paralisando nosso espírito.

3. A hora certa de mudar de endereço: quando nossa residência não é mais o nosso lar.

4. A hora certa de mudar de ambiente de trabalho: quando nosso asco e desgosto ante a podridão e mediocridade alheia são irremediáveis, incontornáveis.

5. A hora certa de mudar de máscara: quando nos assemelhamos, nos afeiçoamos a ela. 

6. A hora da morte certa: quando findada e emoldurada em segurança a minha obra; morte "que vem quando eu quero". 

7. A hora da morte justa: quando a força dos nervos, músculos e ossos não mais sustentarem o peso do próprio corpo - ou, quando a força de um espírito não mais comandar nervos, músculos e ossos.

8. A hora certa de criar: quando a realidade que nos cerca, tal como ela se apresenta, já não é suficiente - é preciso uma obra de arte para superá-la, enfeitá-la. 

9. Quando não há canais para o fluxo dos afetos: é preciso providenciar um placebo

10. Quando não há uma terceira pessoa na conversa além de eu e mim mesmo: é necessário escrever - sintetizar a multitude de vozes dentro de um: não é isso escrever?

11. A hora certa de rir: primeiro, de si mesmo.

12. Quem me conhece profundamente deve ter fôlego; meu confidente, força para dividir o peso de um fardo; quem é meu par, minha simpatia; e quem me despreza, mau gosto.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Para Toda a Elevação da Cultura: Uma Ditadura

Devo dizer - a honestidade, a minha estupidez, me impede de proceder de modo diverso - que não discordo, fundamentalmente, de Nietzsche, primogênito que não viveu o século XX, todavia, pretendo atualizá-lo neste ponto: não é apenas alguma forma de escravidão uma precondição, como ele dissera em "Além do Bem e do Mal", para a elevação da cultura. Nós, os que temos um olhar privilegiado, daqui da adolescência do século XXI, devemos dizer: para toda a elevação da cultura é imprescindível uma ditadura

Quanto ao problema da escravidão: o que pode haver de louvável nos povos da África sequestrados para servir de instrumento barato para a acumulação primitiva na América é, justamente, a resistência e a luta. Tanto que é lembrado Zumbi, guerreiro que, por seu sentido de nobreza, não aceitava a condição da escravidão, e teve seus próprios escravos... O que o marxismo mais caricato não compreende: a escravidão não é apenas um fenômeno econômico, é, sobretudo, moral - psicológico. Da mesma forma, o que pode haver de louvável num rato assalariado que tem como perspectiva de vida, horizonte de planos de ação adquirir renda estável e contrair empréstimo bancário para comprar o seu imóvel próprio, gastar seu salário no shopping, nas coisas da moda, etc? Ora! Essa é a evolução tecno-política da escravidão! Já nem é dada aos Senhores a inconveniência de cuidar da casa e da comida do seu cativo: "Dêmos-lhes uma coisa chamada salário e eles que se virem!" 

Justamente, o primeiro assalariado a merecer honra é o grevista, por mais pueril que ele seja, e aquele que não aceita e não se sujeita à essas condições - sobre a porta desse o futuro pendurará guirlandas!
Portanto, reiterando: não apenas alguma forma de escravidão é necessária para o desenlace da teia da dialética do sentido histórico. Nós, os que temos um olhar privilegiado, daqui da adolescência do século XXI, devemos dizer: para toda a elevação da cultura é imprescindível uma ditadura

E para confirmá-lo nem é preciso sair de casa: veja-se o Brasil que dentre as décadas de 1960, 70 e 80 produziu suas mais elevadas formas de cultura em cinco séculos - teatro, cinema, literatura, poesia, música - um tanto antes, muito pouco, quase nada depois dessas três décadas - e que, hoje, celebrando trinta anos de democracia, é uma gigantesca fábrica de mediocridade, exportador de "commodities-da-cultura", i.e., lixo para embalar as noites estrangeiras - por isso mesmo não menos medíocres que as nossas. O que é a nossa cultura hoje? Nossa música? O que vem à tona: não é um refugo? Não é esse o sentido do gosto democrático: revirar o fundo do poço para que todos possam ter acesso ao que nele apodrece? 

Para não correr o risco de soar (ainda mais?) elitista, não vamos comentar sobre a profusão de funks das periferias urbanas: seria desleal - são moleques desprovidos dos meios da elevada cultura, em outras palavras, são escravos. O que mais me interessa é a pobreza estética que se identifica mais rapidamente com nossas camadas econômicas médias e altas: aquilo que se chama por convenção de "sertanejo", apesar de todo abuso da lógica, toda a violência contra a histórica da cultura caipira. É fato: parece-me que essa indústria cultural tem seus tentáculos nos nós, nos pólos da agroindústria, onde o grande capital nacional aufere e amplia seus lucros, na esteira da desindustrialização brasileira e na aposta do petismo em exportação de commodities e, dali, segue para os grandes centros urbanos a partir dos fluxos de trocas de valores inerentes ao urbano-rural, talvez ainda mais no caso brasileiro - aqui, não haveria urbano sem o rural (a industrialização de algumas sociedades suprimiu o rural dentro de seus limites, deslocando geograficamente suas necessidades de ativos agrários, por vezes ao vizinho, ora ao estrangeiro mais distante). Pois bem: existe, hoje por sobre a face da Terra, alguma experiência estética mais miserável? Algo que apequene ainda mais a vida do rebanho? Fica aqui registrado o meu desgosto.

Queremos mais? Façamos uma visita aos jardins dos nossos vizinhos: a Argentina, cuja música popular é representada por um Fito Páez (Um parênteses aqui: quem no Brasil é dessa estirpe? Precisaríamos fundir alguns de nossos melhores metais para atingir tal nobreza; um Renato Russo, talvez, se estivesse ainda vivo - que foi reconhecido desde os Paralamas do Sucesso à Caetano Veloso, portanto, pode até estar acima deles), teve seu período de produção intensa também durante o seu ciclo de ditadura. Desnecessário dizer, até os postes sabem, mas é sempre bom lembrar: na Argentina se lê muito - no Brasil não se lê. 

Deveras, deveríamos, todos os latino-americanos, elaborar um reconhecimento público de agradecimento à Washington: o que seríamos nós, pobres Estados semi-feudais, de baixa industrialização e, no caso brasileiro, sub-imperial, sem as nossas ditaduras? Onde enfiaríamos o orgulho da nossa esquerda? No trabalhismo nacionalista dos anos 1930-50? Ele não caberia lá... Somente a ditadura pôde dar sobrevida ao ideal da aventura comunista no Brasil: jogando-os de aviões, fuzilando-os no Araguaia. Até a maior estupidez ganha alguma honra tornada mártir. Não é diferente neste caso.

Queremos atravessar a rua? Inglaterra: para não sair do escopo da música, todo o grande momento do rock britânico é filho dos enfrentamentos políticos daquela sociedade: o punk como reação aos movimentos de financeirização da vida e privatização de partes do Estado na Era Thatcher; Beatles, Stones, Who... como filhos do Baby Boom após, simplesmente, a 2ª Guerra Mundial; uma geração a qual todo o Ocidente deve o ideal da Contra-Cultura.

E por que, justamente, as coisas são assim - desde a antiguidade clássica até hoje? Ora! Retomando a linha de pensamento de Nietzsche: a democracia produz algo, talvez aquilo o que ela produza de pior: muitos impotentes rancorosos, moralistas, censores da vida e da potência alheia; em suma, a igualdade anseia por um tirano que satisfaça suas frustrações. Uma vez o tirano colocado em seu posto, o cinismo de nossa Era chama de ditadura: o terreno mais fértil para a elevação da cultura, onde os fortes e os potentes são testados e, por assim dizer, provocados.

Que venha a "vox populi, vox dei"! Eu já estou enfastiado de esperar, contudo, ainda me divirto - uma diversão miserável, talvez - rindo do rebanho!

domingo, 17 de janeiro de 2016

Honestidade, a Minha Estupidez

Pois, "toda virtude tende a estupidez".

Agora à noite me atacava um sentimento terrível. Já havia me alertado Zaratustra: há sentimentos que querem assassinar o solitário. Saí de casa - e que isso sempre me signifique: sair à caça - em busca de alguma alegria e tive, não a que ansiava, mas, melhor ainda, uma inesperada: compreendi melhor um aforismo do "Além do Bem e do Mal":

"Quando se tem caráter, tem-se também sua experiência típica, que sempre retorna" [Nietzsche, Capítulo IV, "Máximas e Interlúdios", 70.]

Pois bem: saía a caça - me questionava sobre o problema do eterno retorno: seria, como defendia Deleuze, o eterno retorno do diferente; ou, como defendem outros - e é textualmente mais explícito em Nietzsche -, o eterno retorno do mesmo?

Quando eu, com aquilo que tenho demais humano, vagava por aí, dentre os meus pensamentos, descendo a avenida Araucárias, talvez até acima da velocidade preconizada pela lei para esta via na minha bicicleta - o meu motor de um único cavalo... -, lembrei-me daquele aforismo: era justamente ali, naquele momento, que eu tinha a minha experiência típica - reescrevendo a tradução, eu talvez acrescentaria: "quando se é honesto quanto ao próprio caráter...". Lembrei-me no mesmo momento de um certo evento - em absoluto, muito pouco memorável - da minha infância e que, na estrutura, se repetia: a minha disposição fisiológica compelia meus afetos para apontarem para a mesma direção de vinte anos atrás - ó, que divino sentimento que me recupera da morte!

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A: Vieste até aqui - de bicicleta?
JB: Ora, e de que outra forma eu viria? Eu comigo tenho meus próprios pensamentos que a ninguém mais cabem - seriam no todo e no fundo mesmo indizíveis; saibas apenas que meu orgulho é um tanto maior que a minha vaidade e, no fim das contas, de que outro modo eu disfarçaria-me ante este mortais - eu, que sou um deus? 

A: Quanta presunção! O que por ventura faria de ti um imortal? 

JB: Para ser honesto, uma ofensa à sua inveja: a minha obra - meus genes que se perpetuarão; minha arte que será lembrada através dos séculos como brilho áureo deste tempo de miséria da cultura!

A: Por que ainda perguntei-te?! Era melhor guardar comigo o meu asco para contigo!

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Portanto, de volta ao problema - e, acrescento, é um problema que tem seu tempo: em determinadas condições subjetivas, psicológicas e fisiológicas ambas as interpretações valem. Tanto 1) o eterno retorno do diferente - vislumbrando um tempo de condições favoráveis à experiência, à tentação daquilo que é diferente - que desafia nossa resposta afetiva mais tradicional - e, como radicais, tanto eu quanto Deleuze, talvez para lá é que nos forçamos, quase sempre; 2) quanto o eterno retorno do mesmo, quando, na análise das condições da experiência empírica, sentimos que não vale a pena colocar em risco o nosso orgulho - não procurar na rua, dentre as sujeiras do mercado público, aquilo de que a nossa economia doméstica já está abastecida. Ou, em outra fórmula, já elaborada por aqui: zelar pela abundância sem errar pelo excesso.

[Redescobri, também - a partir, novamente, de uma outra experiência típica minha - que eu gosto mesmo é de desafiar os campos dominantes de um acorde na elaboração da melodia. Quase sempre junto uma quarta ou segunda ou sexta nota à um acorde que, por si próprio, foge do campo harmônico do tom da canção de que faz parte: encontrei aí, hoje, o meu refrão.]

Tenho tudo daquilo que preciso em casa: internet, meu violão e diversos gêneros alimentícios. Todo o mais seria excesso. Não preciso satisfazer aquele sentimento que queria me matar: eu mesmo cravo fundo nele o meu punhal! Não preciso - nem devo - buscar o fetiche da mercadoria ou a reificação das relações sociais ali, onde eles se oferecem, dentre o rebanho! Hoje, encontrei o eterno retorno de mim mesmo: faço o que precisar ser feito sozinho - o que me faltar aqui, que se complete com o meu orgulho.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

ABM - Aforismo 269

Talvez seja leviano de minha parte trazer para o facebook algo tão grave... contudo, sou mesmo leviano desde a nascença e quero compartilhar aqui um excerto de um aforismo da última parte do "Além do Bem e do Mal" (Capítulo IX, "O Que é Nobre?") que ajuda a compreender - uma máscara, uma carapuça que a tantos serve!? - algumas manifestações da loucura, de Nietzsche a Belchior, o rapaz latino-americano sem dinheiro no banco. Um sugestivo aforismo 269: 

[Onde houver "JB" entre colchetes sou eu mesmo falando dentre o aforismo.]

"[...] É compreensível que eles precisamente sejam alvo, por parte da mulher - que é clarividente do mundo do sofrer e também ansiosa de ajudar e salvar, infelizmente muito além de suas forças -, dessas erupções de ilimitada e devotadíssima compaixão, que a multidão, sobretudo a multidão que venera, não entende e acumula de interpretações curiosas e autocomplacentes. Essa compaixão normalmente se ilude a respeito de sua força; a mulher quer acreditar que o amor tudo pode [JB: Lembram de "Eros e Psiquê"? É esse o mito grego, ao menos na versão de Apuleio, que deixa subentendido que o amor - o amor de EROS E PSIQUÊ, uma intensa paixão - tudo supera...] - eis aí propriamente a sua fé. Oh, o conhecedor do coração percebe quão pobre, desamparado, presunçoso, estúpido, canhestro, destruidor mais que salvador é inclusive o melhor e mais profundo amor! [JB: Aqui fala Nietzsche com suas "verdades", suas frustrações... sejamos indolentes para com ele! Ele merece.] - É possível que na santa fábula e disfarce da vida de Jesus esteja oculto o mais doloroso caso de martírio do conhecimento sobre o amor: o martírio do coração mais inocente e desejoso, que nenhum amor humano havia satisfeito, que exigia amor, ser amado e nada além, com dureza, com delírio, com terríveis acessos contra os que amor lhe negavam; a história de um pobre insaciado e insaciável no amor, que teve de inventar o inferno para povoá-lo dos que não queriam amá-lo - e que, conhecendo enfim o amor dos humanos, teve de inventar um Deus que é inteiramente amor, inteiramente capacidade de amar - que se compadece do amor humano, tão mísero, tão insciente! Quem sente deste modo, quem possui tal saber a respeito do amor - procura a morte. Mas por que se entregar a reflexões assim tão dolorosas? Supondo que não se tenha de fazê-lo. -"

"Goiânia Antiga"

O que seria da humanidade sem os seres humanos de sensibilidade superior? Um incontornável desgosto, deveras - e não o que é: um devir. Não fosse a atração da pessoa por esse belo Flamboyant florido não teríamos um registro casual da Goiânia da década de 1960. Aliás, a cada foto nova dessa página, Goiânia Antiga, sou atacado por uma irremediável vontade de pular 20 anos para trás - ai, pudera!

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Incipit Tragoedia

Ó, espelho meu... quanto deste prateado que furtivamente brota em meus belos, belíssimos cabelos não é pai e filho das minhas mais elevadas esperanças? Eu mesmo sendo o espírito santo encarnado.
Eu poderia ter me apaixonado por uma santa; uma nobre sem-graça; por uma vida estável e um deplorável bem estar - Mas nunca tive esse azar!

Acabei de voltar do Hades. Perdi a conta - já tantas vezes! Os Campos Elísios nunca se me apresentaram tão floridos como hoje, deveras - e o mergulho no Lete... inominável. Pudera - ai, que presente dos deuses! - esquecer-me de minha vida inteira até aqui e começar tudo de novo. Descobrir tudo de novo. Ah, aquilo que eu já sei - que nunca secasse a fonte que me renova sempre o prazer de saber! Ai, Enkidu que vem da floresta enternecido pelo conhecimento do homem - ai, Enkidu em mim! -, me siga até onde for a minha tragédia, me siga até onde for a tua força, me sirva da tua bondade - eu mesmo, que começo cada dia com uma maldade! -, enche dela a minha justiça!

Que assombroso júbilo estar na minha pele hoje... quem o suportaria senão eu mesmo?! 

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Paráfrase III

M: E agora, como recompensa, aceita uma pequena verdade. Sou suficientemente velha para te dizer. Sufoca-a, tapa-lhe a boca, porque do contrário grita alto demais...

H: Venha a tua verdade, mulher!

M: Vais ter com radfems? Não te esqueças do açoite!

domingo, 10 de janeiro de 2016

CI - Aforismo 34

Meu "Crepúsculo dos Ídolos" (1888) está marcado no aforismo que transcrevo a seguir. Ainda não li o livro todo, folheei-o displicentemente há alguns meses e guardei esse aforismo pela ferocidade da crítica que ele apresenta. 

Penso ser inegável que hoje assistimos à ruína de praticamente tudo aquilo que foi associado um dia à esquerda do espectro político - os comunistas, o PT, os sindicatos, os direitos trabalhistas... No caso do Brasil, especificamente, há uma fragmentação a cada dia maior, tanto consequência como causa de uma desmobilização, uma incapacidade de organização política, etc. De minha parte, penso que aquele pessoal do Rio que mobiliza a categoria dos garis a partir de uma leitura deleuziana é a única - senão a última... - organização que mantém fôlego, para usar uma expressão famosa: que "é um devir".
Eu já escrevi algo neste mesmo sentido - no caso, sobre esse "feminismo de facebook", asqueroso, desprezível - o "Feminismo Pára-Que-Tá-Feio!"

Aqui o Nietzsche toma o caso dos anarquistas - ele recorrentemente cita os "camaradas anarquistas", desde o "Aurora" (1880) - mas o seu escopo nos serve para analisar aquele fenômeno supracitado. É interessante que ele, provavelmente, foi o primeiro pensador a colocar o cristianismo próximo dos ideais socialistas (tendo como gradações do mesmo espírito os "democratas", "socialistas" e "anarquistas") - contra a própria "vontade consciente", contra os próprios discursos destes. 

O belo do pensamento de Nietzsche é que ele é inapreensível, incontrolável, não se prende a esquemas sistemáticos... Há quem o chame precursor do nazismo - a calúnia da qual ele mais se desgostaria, deveras... ser associado à germanidade funtamentalista-cristã! Ele, contudo, se coloca como "anti-socialista" convicto e toda a sua crítica ao socialismo e seus pares - para mim, a do "espírito democrático" no "Além do Bem e do Mal" é o mais assustador insight dele e, ainda assim e por isso mesmo, genial - é um deleite! Esse aforismo é bem pontual, há ainda muitos outros que observam outras questões...

"34. Cristão e anarquista - Quando o anarquista [JB: ou a feminista, o governista/petista, etc. - ou mesmo para o outro lado da ferradura: fascista, golpista, etc.], como porta-voz dos estratos declinantes da sociedade, exige, com bela indignação, "direito", "justiça", "direitos iguais", ele apenas está sob a pressão da sua incultura, que não pode compreender por que sofre realmente - de que é pobre, de vida... Um instinto causal é poderoso dentro dele: alguém deve ser culpado por ele se encontrar mal... E a "bela indignação" mesma lhe faz bem, para todo pobre-diabo é um prazer xingar - dá uma pequena embriaguez de poder. Já o lamento, a queixa, pode dar à vida um encanto que a torne suportável: há uma sutil dose de vingança em toda queixa, censuramos nosso estado ruim, às vezes até nossa ruindade, àqueles que estão em outra condição, como sendo uma injustiça, um privilégio ilícito. "Se eu sou canaille, você também deve ser": com esta lógica se faz revolução. - Em caso nenhum a queixa vale algo: ela se origina da fraqueza. Se atribuímos nosso estado ruim a outros ou a nós mesmos - a primeira coisa faz o socialista, a segunda o cristão, por exemplo - é algo que não faz diferença. O que há em comum, digamos também o que há de indigno nisso, é o fato de que alguém deve ser culpado por se sofrer - em suma, de que o sofredor prescreve o mel da vingança para seu sofrimento. Os objetos dessa necessidade de vingança, como uma necessidade de prazer, são causas de ocasião: em toda parte o sofredor acha ocasiões para mitigar sua pequena vingança - se for cristão, repito, encontra-as em si mesmo... O cristão e o anarquista - os dois são decadénts. Mas, também quando o cristão condena, denigre e enlameia o mundo, ele o faz pelo mesmo instinto a partir do qual o trabalhador socialista condena, denigre e enlameia a sociedade: mesmo o "Juízo Final" é ainda o doce consolo da vingança - a revolução que o trabalhador socialista também aguarda, apenas imaginada para mais adiante... E o próprio "além" - para que um além, se não fosse um meio de denegrir o aquém?..."

Decifrando-te ou "Um Pouco da Arte da Guerra"

A: Vejo nos seus olhos: por que te causo desgosto? Por que razão, sem nem olhar para a minha direção, mira tuas flechas para mim? Teria a minha vaidade ferido a sua

B: Ora, meu caro, por acaso gastaria minhas flechas contigo? O que te apavora é a possibilidade de pisoteio pelas minhas botas. Deixe-me te contar um segredo - e espero que seja indulgente para com a minha honestidade: a qualidade daquele que me ataca não deixa de revelar algo acerca da minha própria qualidade. Não te atacaria, pois, aquele a quem ataco gostaria de ver tenso, à minha altura - aí eu teria um bom combate! -, e até onde suportaria uma sangria. Mas tu, me parece, não aguentas, não resistirias à minha força - derrubaria-te de um só golpe! E, se me desgosto de ti, é porque me irritei com teu jogo... 

A: Pra ser honesto, dói meu pescoço, cansa minha vista ter que olhar pra você... tão alto e tão longe!

B: Pois é daqui que te vejo e a visão do teu jogo me enoja: crês que poderias ter chegado lá. Mas ficaste com medo de que, quando lá chegasse, não tivesses ninguém para testemunhar tua "glória". Ficou logo atormentado pelo receio de ficar só - parou, então, no meio do caminho para desfilar suas plumas coloridas. Bem impressionado ficara o rebanho, deveras! Mas, sinto te dizer, ele logo se distraí com outras coisas, pois, as retinas do rebanho não enxergam tantas cores... 

A: Lá? Que tu sabes sobre chegar lá?

B: De minha parte, quando lá cheguei pela primeira vez, olhei para trás e me emburreci: "Porque vós não conseguis chegar até aqui?! Falta-vos coragem? Estou bem próximo do abismo, deveras, e, nas vezes em que nele me precipitei, tive que ter força para me sustentar na sua beira e retomar à terra firme - portanto, recomendo-lhes logo livrar-se de todo o peso supérfluo, supondo que queiram vir até aqui... - quando quis me lançar em sua direção, tive que usar minhas asas. Ah, vejo logo que não conseguem voar... Seria preciso antes desatrofiar as vossas, ou, mais ainda, criarem asas para vós próprios, meus caros!" De lá fui e voltei várias vezes, aguardando ansioso por alguma companhia - eu e mim estamos muito compenetrados numa conversa - precisamos de um amigo! Venham até mim, amigos, - eu vos espero! - mas que não venham rastejando!

A: E asas, não tenho?

B: Ainda precisaria passar pelo casulo, deveras. Mas, longe de mim - inseto asqueroso! É este o teu jogo que enoja: quer parecer que poderia, um dia, voar - disfarçando tu mesmo ser um inseto - quer parecer que voaria tão alto quanto gostaria a tua vaidade. Com efeito, como poderia eu - uma ave de rapina - te atacar? Já te honro um tanto decifrando-te.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Decifra-me

1. A interpretação - de textos e contextos - é uma arte e, como toda arte, é preciso ter nascido para ela.

2. Função psico-fisiológica dos mitos: superar impasses simbólicos para libertar fluxos afetivos.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Minha Grande Saúde

Quando estive apiay, embebi de teclados (cordas sintéticas) os arranjos, elaborei melodias sob dissonâncias menores e desacelerei a velocidade das minhas canções - fossem elas de qualquer espécie de música romântica, tanto "amor romântico" como qualquer outro "ideal romântico". Assim queria a minha depressão curar-se a si mesma. Quando estive iñaron, a minha fúria à flor da pele me compelia a uma estética abrasiva: distorções em tudo - vozes e guitarras, substituindo o baixo pelo som sintético do lead sawtooth, ainda mais abrasivo que o próprio baixo sob efeito de distorção. Assim exigia a minha extrema irritabilidade - um golpe para afastar os afetados e restabelecer-se o equilíbrio dos meus próprios afetos. Quando estive na minha mais elevada altura: um céu não exatamente desanuviado... estava acima das nuvens! - atmosfera rarefeita, ar seco... tudo como anseia a minha grande saúde. Ali, minhas canções eram rápidas e fortes, contudo, leves. O júbilo experimentado com a existência era refletido na minha alegria em desenhar linhas de baixo que determinavam o chão por sobre o qual a minha guitarra e minha voz dançavam. Distorções, sim, nas guitarras (sempre mais de uma) e na voz - assim queria a minha força ser reconhecida. Que nome dariam os Ka'apor para tal estado de espírito? Ou os gregos? Que nome daria eu mesmo para aquilo que criei para além de bem e mal, para além de mim? Oxalá que eu sempre volte para : a minha montanha! Aqui o ar é mais puro! Minhas vias aéreas mais livres, meu pulmão tem mais fôlego; a vida é sempre mais alegre!

"Conhece-te a ti mesmo - torna-te quem tu és"