quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Adeus, 2015!

Se 2015 fosse uma pessoa de quem eu pudesse me despedir, consciencioso de um incontornável - adeus..:

Por ti, nutrirei eterna gratidão, minha querida. Poucas pessoas que passaram pela minha vida me fariam olhar para trás com tanta ternura. E, deveras, se houvesse um espelho retrovisor na locomotiva que nos leva ao futuro, eu não poderia evitar de nele mirar o olhar, com um coração tão pleno de anseio como faço agora. Tu, que vieste sob o signo de Marte, o deus da guerra; vieste para reiterar: o que não me mata - me fortalece; tu, que vieste me desprezando - como só os grandes amantes sabem desprezar - intumesce meu espírito com mel de floradas silvestres, suavemente cortante como só a vida pode fazer. Como diria Zaratustra, o que sabe do amor aquele que não sabe desprezar o objeto amado? O grande amor tem seus caprichos, assim, ele guarda o seu valor.

Por vezes, teu silêncio dilacerara meus ouvidos - eu gritava abrigando-o do frio e me protegendo, me afastando, acautelando, de um terrível, horrorífico, auto-desprezo. Pois bem: aprendi a ouvir a beleza da sua melodia com os olhos - a mais bela canção que pude vislumbrar até aqui. Não à toa a mais bela melodia reconhecida pela humanidade foi elaborada por Beethoven já surdo: precisamos perder os sentidos para superá-los. Uma parábola.

Em janeiro, a saliva quente do teu mar lambia minhas pernas na Paraíba. Zaratustra era a rocha em que eu me assentava - não fosse isso, não seria eu tragado para as suas profundezas, sem volta? Tive fôlego, aprendi a fitar o abismo - ele fugiu de medo quando o fiz olhar-se a si no espelho... 

Voltei para a Paraíba novamente, desta vez sem a Aurora, e, na volta, lia "Da Morte Livre" no momento exato em que entrávamos numa turbulência... meu arrepio deu testemunho: ainda não era a hora certa de morrer.

Em fevereiro, cortei o açúcar do café: foi o estratagema encontrado para expurgar-me o amargo de mim mesmo. Daí em diante, ao longo do ano, forcei uma interessantíssima mudança no meu metabolismo: aboli o açúcar; troquei gradativamente o chocolate por frutas; o mel passou a fazer parte da minha dieta diária. O chocolate, quando não muito refinado, de alta qualidade, me enfastia no primeiro toque da língua. Fora isso, um silêncio terrível: era a minha hora mais silenciosa falando no meu ouvido. E um terrível remorso me puxando para baixo... Recolhimento era mais que recomendado - era necessário.

Já em março, o céu desanuviado abria cintilante para mim: sob o seu azul eu vislumbrara a beleza da tragédia - como ela nasceu? Essa resposta, mais do que no livro, tive que encontrar, novamente, em mim mesmo.

Abril: a ilusão da tua belíssima aparência me cativara; uma musa, uma sereia estirada na beira do Paranoá, soprou com sua força apolínea uma canção para o meu peito. Que alegria! A primeira do ano, deveras. A mudança do tempo, como era de se esperar, me presenteou com uma leve sinusite, que durou menos de uma semana - nada que se compare com a minha claudicante saúde em 2013 e 2014.

Em maio, vieste para cobrir a noite com um luminoso cobertor de estrelas - os dias não tão frios quanto o usual: já aí se anunciava um ano mais quente que o comum. Assumi a função de Coordenador Pedagógico - para a qual havia sido "escolhido" no início do ano, na mais absoluta falta de interesse do resto do grupo de participar do caos administrativo, pedagógico e financeiro que constitui a instituição de ensino de que faço parte. Minha vaidade, meu orgulho, minha coragem, minha força, meu espírito: foram todos colocados em teste a partir de então - nada mais humano. Humano demais! Fui lançado numa fornalha, forjado contra uma estrela de diamante - resistiria? Até então, eu não sabia.

Como as aves brincam no céu azul-claro de junho - como numa dança alegre -, também eu o fizera: descobri alegremente, com desenvoltura inesperada, que eu também sabia dançar com os meus problemas, meus trabalhos, meus deveres! Que sabedoria alegre! Mas, nem por isso, me permitia descuido - contudo, para o meu gosto, certas coisas deveriam parecer difíceis de serem feitas - apesar de serem fáceis; outras, exatamente o contrário.

Confesso que neste exato momento sou incapaz de me recordar do meu aniversário. Julho foi cansativo - era o fim dos trabalhos que naquele momento me sobrecarregavam. Também aí, como em várias dimensões da vida, passamos pelas 3 transformações: eu era um camelo. De repente, vi a mim mesmo num deserto; saltou de mim um rugido: me tornara um leão - ali, quanto à dimensão do meu ofício. Uma nova aurora viria a raiar a partir de então: e entre, eu e meu grupo de afinidade, começou a germinar uma semente de um projeto; e intervenções pontuais que viriam a ser planejadas e executadas nos meses seguintes, atestando a nossa competência, a nossa habilidade. No recesso, no entanto, em poucos dias dou as lapidadas finais nas letras e arranjos e gravo o álbum deste ano, o poderoso, furioso, "Iñaron" - que presta um testemunho poético muito mais sutil das experiências deste ano até aqui.

Fora do trabalho, tudo permanecia árido, mais árido que o clima venturiventiano em agosto: eu estava mesmo num deserto. Apenas agora, por fins de dezembro, posso dizer ter encontrado alguma umidade - um oásis, talvez. Neste deserto, apenas eu e minha sombra... ai, "as histórias que posso contar!"

Em determinados desertos as noites são gélidas, a despeito do calor do dia. Era assim também comigo: setembro, apesar de insuportavelmente quente, dentro de mim era gelado. Também neste mês dormi uma noite fora de casa: mas o frio não me abandonava... Decidi, num lance egoísta, fazer uma viagem para um lugar mais quente: juntei meus dias de folga que sobravam e, na primeira quinzena de outubro, passei quatro noites no paraíso - Pipa, Rio Grande do Norte. As impressões deste momento estão por aqui.

Por pura sorte, uma semana antes de viajar consegui encontrar um novo lugar para morar e saí do Guará - para nunca mais voltar...? Que apenas na memória eu guarde algo daquele tempo tenebroso - e vim tomar posse do meu palácio - um palácio itinerante, deveras! - em Águas Claras.

Aí então reconheci, me dei conta de que a felicidade é, hoje e desde sempre, uma coisa egoísta: toda a moralidade que prega que "a alegria deve ser compartilhada", no fundo, me parece ser um sussurro desesperado de quem, fundamentalmente, não crê na sua felicidade - pois essa gente precisa "crer" em algo, sempre - e arrasta para ela algumas tristes testemunhas, que se veem forçadas a reconhecer firma de tal alegria - uma cartorialização dos afetos. Como disse o Andarilho, "a melhor coisa me seria repugnante, se alguém tivesse que partilhá-la comigo".

Com o coração mais quente - já havia voltado a chover em Brasília... - retornei do Paraíso para, mais um vez dentre tantas, descer ao Hades... Já era novembro. Lá, tive que fechar os olhos novamente para beijar a minha Medusa. Bom que fechei os olhos: pude sentir o seu gosto de pedra na boca (os sentidos devem ser ignorados e postos em anteparo contra outros, sempre meio desconfiados - "coração atado, espírito livre" é a fórmula). Esta foi a segunda noite fora de casa do ano. Não suportaria fazer isso de novo, contudo, valeu a experiência - de que outra forma eu poderia firmar-me como sou? Afirmar o que eu quero? Confesso: minha cama - a minha concha. Não vou adornar pescoços lânguidos; não vou lançar-me aos porcos! E se à minha volta há um visco asqueroso: que melhor forma haveria de manter-vos à distância, afetados desprezíveis?!
 
A Medusa fugiu, cheia de ódio, quando lancei contra ela um espelhinho inocente... Mal sabe ela que vivo eu numa casa espelhada - cada parede daqui dá testemunho sobre quem lhe fita! Ela não suportaria adentrar a minha casa, deveras; também, pois, já não é bem-vinda. "Quem aqui entra me dá um honra, quem não entra me dá prazer", está ali na minha porta.

Finalmente, chegamos em dezembro, e não posso evitar de olhar para trás novamente movido por amor, minha querida. Há exatamente um ano eu terminara o "Além de Mim", ainda muito impactado pelo "Ecce Homo", e lancei para mim uma meta: mergulhar na obra de Nietzsche no ano seguinte, de modo que eu pudesse, nadando neste mar, fortalecer as musculaturas do meu espírito - sabendo dos desafios contra os quais eu seria lançado pelo meu remorso, frustração e todos os outros atavismos do espírito do rebanho... E, vejam só: já não posso dizer de qualquer outro ano de minha vida o que eu diria de 2015: tudo o que vivi aqui redime meu passado e justifica meu futuro; tudo o que fiz este ano - devo estar soando repetitivo a esta altura... - o fiz por amor à vida, amor ao meu destino, de onde brota um deliberado orgulho. E, "tudo o que se faz por amor, está para além do bem e do mal".

Já vai alta a madrugada... não precisa dizer palavra! Adeus, meu amor! Como disse em outra oportunidade, sobre teu túmulo lancei sementes de flores e frutos - eu te honrei, da forma como pude. Nos veremos novamente - pintados nos quadros das paredes da memória... guarda contigo teu último beijo que eu guardo comigo meu afago. Será melhor assim!

Seja bem-vindo, estranho 2016! Traga o que trouxer: eu o honro - com minhas cinzas, minhas chamas, meu carvão, meu calor; com tudo o que sou, ardendo por amor.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Paráfrase II

Participo desses grupos de Whatsapp e dessas confraternizações com os olhos bem abertos: essas pessoas não perdoam que eu não inveje suas pequenas virtudes.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Solstício de Verão

Adentro aos portais do verão, a estação da luz; atravesso o solstício que se acena nos próximos giros dos ponteiros do relógio, pela 26ª vez nesta vida. Amanhã será o dia mais longo do ano. Depomos contra a vida, ofendemos o sentido da Terra, apreendendo maldade nesta metáfora. Contudo, quê posso fazer a essa altura da noite - arrancar-me o coração do peito? Num descuido, eu o faria, talvez - como já fizera uma ou outra vez. Amarrá-lo com fios de aço, apertar suas artérias e veias de modo que sangre o menos possível - também já o fiz muitas vezes, faço-o com ainda mais força agora, deveras. Depois de hoje, amanhã será o dia mais longo do ano... E já tive tantos outros - e ainda mais cedo este ano...
 
Há pessoas que por uma ventura da existência, um acaso fisiológico, um metabolismo do espírito, vivem muito em muito pouco tempo; têm experiências diversas, enchendo todos os bolsos do dia, reiteradamente. Assemelham-se me a musaranhos, ou qualquer outro mamífero primitivo, que têm de viver correndo atrás de alimento o dia inteiro, todos os dias, e se colocam sempre em risco por uma fatia de vida, uma migalha, e mais outra; agora, daqui a pouco; aqui e ali, "na casa de quem? a que horas?"; etc. E, vivendo muito irrefletidamente, aprendem muito pouco, pois, têm pouco tempo para si mesmas. O que, em todo o caso, não é nem bom nem mau, necessariamente. Simplesmente é assim.
 
Eu, que sou um predador, tenho porte - tamanho e força - a natureza, em tempos longínquos, já foi mais generosa para o meu tipo: hoje, preciso dispor de intercaladas longas estações - de caça e de hibernação. Aquilo que eu tomo para mim, destroço, dilacero; dela faço minha carne, meus ossos, minha tez - digiro longamente, absorvendo tudo o quanto me for necessário. Eu, um urso polar - tão branco e frio quanto o gelo; tão glacial que, desconfio, queimo quem me tocar inadvertidamente -, desperto no verão para caçar o meu alimento. Eu, que há dois verões decidi que ainda valia a pena continuar vivo, adentro essa madrugada não sem salivar sedento pelo meu banquete; não miro as estrelas - que, contra todo o senso comum, giram orquestradamente no espaço ao meu redor - sem sangue nos olhos. Lascivo? Virulento? Talvez, provavelmente, melhor que seja assim.

Sepulto 2015 numa cova profunda, por sobre a qual lanço desde já sementes de flores e frutos deveras perfumados e nutritivos, no coração - aquela terra em que ninguém pisa.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

"Coração Atado, Espírito Livre"

Há pouco ouvi uma música impecável do ponto de vista da produção; um funk(-rock?) carregado de teclados e sons sintéticos, algo que lembrava os anos 1980; uma variação rítmica impressionante para apenas quatro minutos, contra a qual a nenhum ser humano é dado evitar a sedução da sua cinestesia, colocando-se em movimento; já a havia ouvido antes num evento no CEF 14, mas não conhecia o seu nome: "Uptown Funk", de um músico judeu, britânico radicado em New York, Mark Ronson. A monocórdica linha do baixo e algo do seu estilo rítmico me lembrou "The Call Up", do Clash. Fui conferir the lyrics...

Como pude me permitir fazer uma referência supostamente tão elogiosa a tal canção, sendo que, do ponto de vista do conteúdo simbólico das letras, ela representa, talvez, o mais absoluto lixo produzido pela espécie humana? Pois, era eu imitando o raciocínio do rebanho. Mark Ronson: um playboy ocidental, judeu conservador - provavelmente a variação mais asquerosa da espécie humana por sobre a face dessa cansada Terra, que produz a assim chamada música pop - esse alimento para o espírito do rebanho... Nietzsche ficaria horrorizado: a crítica que ele faz ao espírito democrático - algo que hoje, envergonhados que nos tornamos, chamaríamos de "crítica da cultura de massa" - é assustadoramente certeira. O "povo" não consegue ir muito longe, atrapalhado que fica ao apoiar com os quatro membros no chão... não aprenderam a ficar de pé e correr - que pena!

A boa música - a música que é, ao mesmo tempo, atestado, testemunho e instrumento de elevação do espírito - deverá, sempre, ser a música que não entra nos ouvidos do rebanho. Eles teriam que tê-los destroçados, aprendendo a ouvi-la com os olhos...

Poucas vezes vi na vida uma mulher tão bonita. Absolutamente tudo nela era impecável; a natureza cuidou de superar a minha imaginação em todos os mínimos detalhes - com efeito, a cada novo olhar lançado, das mais diferentes perspectivas, maravilha-me com uma nova beleza descoberta. Todavia, quando fui aproximar-me do conteúdo social que conferia humanidade àquela sublime experiência estética... indescritível fora a minha frustração. 

Quem nunca passou por experiência semelhante? Comentando-a, o rebanho me diria: "Bastava ignorá-la nos aspectos mais asquerosos, fingir algum interesse nos seus vícios e pobrezas de espírito - pois, o nosso interesse é bem outro..."; "Não era preciso ter nenhuma espécie - ainda que fantasiosa - de comunhão de ideais, nossa atração por ela seria física, por ela bateria mais forte o nosso coração...". Assim me diria o cínico rebanho.

Também o faria quanto à música: "Basta-nos sentir a batida - feel the beat! -, ouvir a música com o coração..."; "Não podemos levar tudo tão à sério... é só música." - assim escorreriam das suas bocas, em meio a bile viscosa, as palavras do rebanho. Pois, os escravos, o rebanho, dissociados que são, são capazes de dissociar a vida; quebrantar a realidade e engolir cacos de vidro sem sangrar suas entranhas - eles os moem, deveras. Tomam das pessoas e das coisas apenas aquilo que lhes bastam - não sem um elevado grau de violência: pois eles se vingam de tudo aquilo que os obriga a dissociar; no fundo, os faz lembrar que eles mesmos, não fosse por sua dissociação psicológica, não suportariam a existência absolutamente desprezível a que estão condenados.

E não é uma canção perfeita um ideal tal qual a mulher perfeita?

Nós - os que, ao mirar a imperfeição, sabemos vislumbrar o conteúdo que a preencha (e este conteúdo é um vir-a-ser!); nós, os que somos por inteiro, não meras máquinas sob a égide de uma vontade externa, pois, não somos escravos, não comemos vidro, pelo contrário, devoramos integralmente um espelho - não queremos - não esperamos! - das mulheres, da música, da vida, enfim, algo que enfastie nossos sentidos, que faça salivar os cães selvagens da carruagem das nossas paixões, e faça com que o nosso coração se arraste para longe do nosso cérebro - trajetória ao fim da qual terminaremos esfolados, tanto nosso coração quanto nós mesmos, o espírito. Qualquer evento ou coisa que atente contra este princípio acende as tochas da nossa desconfiança - assim o quer o nosso espírito, que preconiza a liberdade ante a segurança. E é por isso mesmo que medimos milimetricamente o quanto soltar as nossas rédeas - afinal, quer aventura maior para o nosso orgulho, há desafio maior para a apreciação estética da vida na Terra do que remendar os cacos e criar beleza de um coração imperfeito?

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"Coração atado, espírito livre - Quando se amarra e se mantém preso o próprio coração, pode-se dar ao espírito muitas liberdades: já o disse uma vez. Mas não me acreditam, a menos que já o saibam."

"Uma vez tomada a decisão, fechar os ouvidos mesmo ao melhor argumento contrário: sinal do caráter forte. Portanto, uma ocasional vontade de estupidez."

"As grandes épocas da nossa vida são aquelas em que temos a coragem de rebatizar nosso lado mau de nosso lado melhor."

[Aforismos 87, 107 e 116, "Além do Bem e do Mal", capítulo 4º, "Máximas e Interlúdios", Nietzsche.]

domingo, 13 de dezembro de 2015

Para Um Discurso Convexo

 Comentário a respeito disso:

Não era justamente isso o que clamavam alguns que se dizem socialistas - o povo na rua, uma militância alegre - impossível não recordar também daquele adjetivo jocoso: "festiva" -, entusiasmada? Não é esse, precisamente, o povo brasileiro? Há alguma outra máscara que consiga cobrir a maior parte da horrenda face do Brasil: discurso vazio, sem muito compromisso com a verdade, e carnaval? 

No fundo, em que se difere, sei lá, de qualquer coisa que os grupelhos estudantis fazem? Bater tambor, com direito a frase de efeito e tudo o mais - "pisa ligeiro, pisa ligeiro...", ou aquele outro igualmente desprezível, "quem não pula é machista" -, não era a isso que acenávamos, já ali em 2010 (pra não ir muito longe)? 

Estão todos produzindo um discurso côncavo, cujo foco desde já se localiza dentro de si mesmo, só atinge os seus. Nada mais eficiente para o status quo da verdadeira política, a economia.

O rebanho, vejam só!, apenas se diferencia pelas cores. E haja matiz para cobrir um debate que já não existe, reduzido à cinzas!

No fim das contas, um único aspecto - alguém aí já lembrou - leva a política para essas manifestações: a presença ostensiva do aparelho repressor. Ali vemos a verdadeira política: quando a polícia entra em ação.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

1+1=1,2, no máximo 1,5

Um casal nem sempre - ou, melhor dizendo, quase nunca - representa uma soma de duas potências humanas. Nem tanto pela forma do casamento em si - se bem que, a uma distância certa, adequada a cada caso, qualquer relacionamento humano é saudável (penso na minha mãe... como nos faz bem 2 mil quilômetros de distância!) -, senão e sobretudo por uma questão de hábito e estilo de vida hegemônicos entre os indivíduos. Hábitos de vida ou de consumo - que diferença há aí, senão de uma linguagem hipócrita? A "lei" da conservação de energia - e o que na existência inteira exige mais energia que o aprimoramento do espírito? Se eu pudesse deixar um testemunho à humanidade seria: aprenda a ler, humanidade! - leva à adoção de hábitos letárgicos, ao consumo de tudo aquilo dotado de virtu dormitiva: o consumo da opinião fabricada - e há uma infinidade delas nas prateleiras da ideologia! -, de modos de vida pré-concebidos - "endivide-se: é o único caminho para a felicidade! Que importam a autonomia, a liberdade, a consciência, a força, a honra ou o orgulho de um intelecto vaidoso? Seja igual a todos, assim será mais fácil passar por entre as portilhas estreitas da vida!": assim falam os lobos para seduzir um rebanho de cordeiros. Que engordem para o meu banquete! Pensar no seu sangue e carne salgados já me leva a salivar. E que tenho eu com os lobos? Eles são meus cães!

Portanto: junte-se duas pessoas que - elas mesmas sendo a metade, ou ainda (bem!) menos, do que poderiam ser - e, tornando-se este o padrão, temos uma marcha, uma procissão de perder de vista, um espetáculo de mediocridade grassando por sobre a face da Terra. "Quando vi um santo cruzando com uma gansa a Terra me pareceu um sanatório", assim falou Zaratustra.

E bem deve residir aí, no anseio de gente-pela-metade por suas "caras-metades", uma preguiça e uma covardia jocosa, deveras.
Um indivíduo fatorial - 1! -? Um indivíduo elevado à ele mesmo - 1¹ -? Uma "roda que gira sobre si"? Apenas posso encontrar uma equivalência para tais questões no espelho. Todavia, uma imagem, uma projeção da luz, sobretudo, daquilo que ainda não existe.

Quis encontrar alguns pares para boas conversas... melhor sorte na próxima! 

"Fala o desapontado - "Eu esperava por um eco, e ouvi apenas elogio. -" [Aforismo 99, "Além do Bem e do Mal", Nietzsche]

O Momento do Salto

20 páginas de "Além do Bem e Do Mal" e eu já posso garantir não ser o mesmo ser humano de antes... A virtu anti-dormitiva do livro me provoca o instinto de conhecer; a tentação travessa de mergulhar no livro me faz folheá-lo displicentemente, até encontrar o capítulo quarto - "Máximas e Interlúdios" - uma gruta de onde brotam a mais límpida água e as mais aromáticas flores de toda a natureza; um recanto perfeito pelo descanso, contemplação e júbilo diante da vida inteira...

Com frequência encontro eu mesmo, nas minhas caminhadas noturnas por infames bosques da vida, flores que fariam a humanidade superior inteira enternecer, decerto. Afinal, "também o concubinato foi corrompido - pelo casamento." [ABM, aforismo 123.] E, não por menos, contra elas pesa uma mesquinharia moral que as crucifica. Os hodiernos - que querem fazer parecer a si mesmos ante os outros, antes a nós, os superiores, importantes por sua renúncia diante da vida; querem parecer fortes por castrar sua coragem e, ainda assim, fazem pose de valentes (há toda espécie de recurso retórico para tal: "Eu respeito a escolha das pessoas, mas não posso concordar com tal coisa [o "homossexualismo", por exemplo]", "Tudo é racismo. Daqui a pouco vai ser crime ser branco", "Ser bom é fácil, o difícil é ser justo", e toda uma infinidade de "etc.s'") - com sua pele fina que disfarça mal o aspecto asqueroso das suas entranhas, querem angariar apoios entre os seus pares - e eles servem para outra coisa que não aglutinar o rebanho, gado desprovido de conteúdo, ovelhas de si mesmos? "Os apartados do rebanho devem sofrer", assim reza o orgulho do gado.

E aqui cabe a observação: não nos tornemos semelhantes aos monstros que combatemos [ABM, aforismo 146] - para tal, em determinado momento, devemos desviar o olhar do abismo... não seria este, precisamente, o momento do salto?

A doutrina da defesa do livre-arbítrio - uma paz entre os instintos, uma equação de valor positivo dos afetos - não era mesmo uma máscara para a ignorância de si mesmo? "Conhece-te a ti mesmo" quer dizer "deixe de ser interessante para ti mesmo"? 

Aqui vai um microscópico testemunho de filiação ao partido dos que afirmam ser esta a inesgotável obra nietzscheana; o mais elevado atestado de estilo e gosto que a humanidade testemunhou até aqui.

domingo, 6 de dezembro de 2015

In Vino Veritas

Minha melhor companhia? Eu mesmo.

Minha maior amante? Minha sombra.

Meu melhor amigo? Gaúcho com 10% de grau alcoólico.

Meu maior orgulho? Minhas superações.

Minha maior vaidade? Ser quem eu sou.

Minha maior honra? Meu ofício. 

Minha obra viva? Minha filha.

Minha obra póstuma? Minha arte.

Minha maior felicidade? Estar vivo para conhecer. 

Minha maior tristeza? Ver de perto aquilo que é pequeno.

Meu templo? O silêncio.

Meu palácio? Minha solidão.

De Tanto Descer ao Hades Por Um Caminho Sombrio...

Ontem à noite findei a leitura do "Humano, Demasiado Humano II" - que me acompanhara desde setembro em algumas descidas ao Hades e outras visões intranquilas -, uma compilação de "Opiniões e Sentenças Diversas" (em outras traduções: "Miscelânea de Opiniões e Sentenças"), publicado em 1879; e "O Andarilho e Sua Sombra", publicado em 1880. Em 1886, Nietzsche, na reedição de suas obras anteriores, quando escreve novos prefácios - que são parte importante da leitura de tais obras desde então e para sempre -, adjunta os dois conjuntos de aforismos, que antes foram publicados como apêndices ao "Humano, Demasiado Humano", em uma única peça. 

O livro divide-se apenas entre as duas partes; dentro de cada uma o fluxo de temas diversos é a regra, apesar de ser possível identificar conjuntos de aforismos que tratam dos mesmos assuntos. Em "O.&S.D." há uma explícita continuação das ideias do livro anterior, "HDH". 

Algumas passagens que me foram memoráveis: os comentários acerca da música de Beethoven - aquele incrível exercício poético de vislumbrar um Beethoven ressuscitado, assombrado ao ouvir sua obra executada pelos mestres póstumos ("Os vivos têm razão. Tenham razão e me deixem voltar para baixo."); outros punhados de ideias e metáforas que acenavam ao Zaratustra e que viriam a ser utilizadas na sua constituição; dois aforismos referentes ao "Hades" - esse lugar sombrio da nossa própria psique - o "deixando no Hades" - particularmente assustador para mim naquele momento - tivesse eu mesmo lido-o dois ou três dias antes, não teria tentado levar à superfície um cadáver putrefeito que por lá encontrei, no fundo de mim mesmo... E disso não faço um arrependimento, uma penitência, pelo contrário, é apenas a constatação de um engano, algo que sujava a água do meu poço, e que logo foi remediado: bem o fiz e igualmente ao, levando-o à superfície, reconhecer sob a luz da consciência o aspecto asqueroso e terrível daquela figura, deixando-o descansar e apodrecer na margem do meu mar, fora das minhas águas - para onde o lancei com um só golpe - aqui fala o meu orgulho! -; e a "descida ao Hades" - aqui Nietzsche e eu compartilhamos do júbilo da existência que só pode vir a ser em nós mesmos com a visão do mais terrível que há na vida... para tal, é preciso ser forte e saber superar a visão de horror e a experiência da mais terrível e lancinante dor. Ah! Os vivos, os hodiernos... como parecem pálidos, ávidos de vida! Enquanto que, para mim, esse alemão morto há 115 anos parece tão inescapavelmente vivaz, uma inoculação contra a qual não há nada que a neutralize, uma injeção de vontade de afirmar a mim mesmo

Matei alguns carneiros - e mais - meu próprio sangue verti para poder superar essa fase. Chegamos então ao crepuscular "O Andarilho e Sua Sombra" (preciso disfarçar que foi daí que assimilei a forma para escrever o meu próprio diálogo com minha sombra? Todavia, é um expediente belíssimo e muito presente já nos textos da antiguidade clássica - de Platão ("A República") a Esquilo ("Prometeu Acorrentado"): todos os pelos do meu corpo se eriçaram com o diálogo da abertura entre o andarilho e a sombra... quem não experimentaria essa resposta fisiológica? Quem não tem espírito, deveras.

Daí me recordo agora das críticas à doutrina da abolição da propriedade - que Nietzsche identifica ser uma equívoca proposta política fruto da má interpretação da natureza humana (uma visão binária, dual, que identifica a oposição frontal entre "bem" e "mal", contra a qual a obra inteira de Nietzsche dá testemunho contrário). Para ele, não é necessário ou preciso que se acabe com a propriedade da terra produtiva, mas que não se permitam liberdades econômicas para produzir facilmente grandes fortunas (exemplo que ele mesmo dá: atividades financeiras) ou para não produzir absolutamente nada e viver na miséria absoluta - que gera revolta e violência - aqui fala uma razoável voz radicalmente social-democrata (e não me refiro à experiência histórica da social-democracia: a covardia encampada na política). Em que mundo vivemos hoje senão naquele exatamente o oposto desse? Impérios financeiros dominam basicamente todas as demais atividades econômicas por sobre toda a face da Terra, e uma crescente parte da humanidade experimenta na vida a pobreza mais absoluta... contra toda a magnífica técnica desenvolvida pela humanidade no seu caminho para a luz do conhecimento, a nossa pobreza de espírito depõe contra o nosso devir histórico.

Ah, os marxistas ortodoxos que, ouvindo a voz de Nietzsche, escutam a reação... estes canalhas que nem mesmo a areia do deserto deveria dar ouvidos!

Por fim, aquela belíssima mensagem de depuração da afecção em si mesmo, a busca da "boa vontade" na vida; o alegrar-se com tudo - tendo como pano de fundo a alegria com o conhecimento, proporcionado pelas mais diversas experiências. É a senha de ouro que liberta o homem das suas cadeias para, novamente, percorrer - mais ainda: desbravar - os mais luminosos caminhos que podem haver para a vida na Terra - percorrendo-o junto a sua sombra, a única testemunha possível da felicidade perene que daí advém.

Um sentido de gratidão não me escapa agora, que me lanço na trilogia final da obra Nietzscheana: "Além do Bem e do Mal" + "Genealogia da Moral" + "Crespúsculo dos Ídolos". Ao fim deste ano - que foi o mais pesado da minha vida inteira até aqui - não posso deixar de agradecer à vida por me permitir escalar essa montanha - e haja fôlego e paciência! - e, por fim, ter nas minhas retinas a mais luminosa e tranquila visão do existir. Recobrei a alegria comigo mesmo e com a vida. Atravesso o portal deste dezembro mais forte e seguro do que quando entrei no portal do janeiro passado - e quem sabe para onde o próximo janeiro poderá me levar?! Forte e tranquilo para lá quero seguir; cheio de amor, desde sempre, amor à vida e amor ao meu destino.



"A sombra: De tudo que disseste, nada me agradou mais do que uma promessa: vocês querem ser novamente bons vizinhos das coisas mais próximas. Isso será bom também para nós, pobres sombras. Pois, admite-o, até agora vocês tiveram prazer em nos caluniar. 

O andarilho: Caluniar? Mas por que vocês nunca se defenderam? Tinham nossos ouvidos bem próximos, afinal. 

A sombra: Achamos que estávamos demasiado próximas para poder falar de nós mesmas. 

O andarilho: Delicadas, muito delicadas! Ah, vocês, sombras, são "pessoas melhores" do que nós, já percebo.

A sombra: No entanto, vocês nos chamam de "importunas" - a nós, que ao menos uma coisa sabemos fazer: calar e esperar - um inglês não faz isso melhor. É verdade, com muita frequência nos vêem seguindo os homens, mas não como suas servas. Quando o homem evita a luz, nós evitamos o homem: pelo menos até aí vai a nossa liberdade. 

O andarilho: Ah, a luz se esquiva bem mais frequentemente do homem, e então vocês também o deixam.

A sombra: Com frequência me foi doloroso te deixar: para mim, que sou ávida de saber, há muita coisa que permanece obscura no homem, pois não posso estar sempre com ele. Ao preço do conhecimento cabal do homem, de bom grado seria eu tua escrava. 

O andarilho: Mas sabes tu, sei eu por acaso, se com isso não passarias repentinamente de escrava a senhora? Ou continuarias escrava, mas, desprezando teu senhor, levarias uma vida de nojo e humilhação? Fiquemos os dois satisfeitos com a liberdade que te coube - a ti e a mim! Pois a visão de um cativo me estragaria as maiores alegrias; a melhor coisa me seria repugnante, se alguém tivesse que partilhá-la comigo - não quero escravos ao meu redor. Por isso também não gosto do cão, o indolente parasita que agita a cauda, que apenas como servo dos homens se tornou "canino", e que eles costumam louvar como sendo fiel ao senhor, dizendo que o acompanha como sua...

A sombra: "Como sua sombra", é o que dizem. Talvez eu hoje te acompanhe já por tempo demais? Foi o dia mais longo, mas estamos quase no fim dele, tem paciência um pouco mais. A relva está úmida, estou tirintando.

O andarilho: Oh, já é tempo de nos separarmos? E eu tinha que te magoar ainda; vi que ficaste mais sombria.

A sombra: Eu enrubesci, na cor que me é possível. Ocorreu-me que muitas vezes fiquei a teus pés como um cão, e que tu, então - 

O andarilho: Eu não poderia rapidamente fazer algo para te agradar? Não tens nenhum desejo?

A sombra: Nenhum, exceto, talvez, o que o "cão" filosófico desejou do grande Alexandre: sai um pouco da frente do sol, está muito frio para mim. 

O andarilho: Que devo fazer? 

A sombra: Anda sob esses pinheiros e olha para as montanhas em torno; o sol se põe. 

O andarilho: Onde estás? Onde estás?"

[Nietzsche, "O Andarilho e Sua Sombra", diálogo final, 1880]