quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Entrevista - Iñaron

Concedo uma entrevista a mim mesmo sobre o meu novo trabalho, "Iñaron", que você DEVE conferir aqui.

Juliano Berquó (JBQ): Olá, Juliano. Como vai?

Juliano Berko (JBK): De bicicleta conjugada com o metrô. Não é por moda; por economia; por afetação avant-garde; nem mesmo por uma questão de estética, senão, e sobretudo, por uma questão de saúde. A grande saúde que, como nos ensina Nietzsche, é preciso perdê-la para tê-la. É no metrô, a caminho do trabalho, que me mantive no eixo ao longo destes últimos 9 meses, lendo até aqui metade da obra daquele. Já não sou o mesmo que era há alguns meses atrás, o que dirá há alguns anos! Corro, pedalo, testo minha força em todo exercício quando posso. "Tenho fôlego, mas dói-me o joelho". Mergulho profundo, mas a pressão faz doer meus ouvidos, por isso, nado mais na superfície do lago, fico boiando vendo o céu, de quando em quando o pôr-do-sol... É assim que vou.

JBQ: É verdade que você completou 10 anos de carreira como compositor? 

JBK: A verdade é uma mulher que não me dá mais tesão. Tenho por ela um carinho fraterno, mas quero dela distância segura pela minha saúde e pela sua felicidade. Sou um partidário da mentira. Todavia, em respeito aquela, já são pouco mais de 10 anos compondo canções que pouquíssima gente ouve. Não posso chamar isso de carreira - e ainda bem! Se e quando eu me permitisse abandonar o amador em mim, vendendo minha alma - a minha música -, aí então preferiria estar morto. Seria quase como se fosse mesmo a morte.

JBQ: Então fale um pouco sobre "Iñaron", seu novo álbum...

JBK: É uma compilação de 10 canções que representam meu espírito ao longo dos últimos 9 meses, pesadas como chumbo... E ainda fui capaz de voar com elas, dada a força que alcancei. Creio que se até fevereiro de 2016 eu vier com mais um tanto de músicas assim... não chego aos 27 anos. 
E o chumbo sabe-se ser venenoso. Foi um enorme trabalho tornar todo esse caráter plúmbeo dessas músicas em medicina: uma homeopatia invertida, uma hiperdosagem pela qual tive de tornar mais encorpado, volumoso, denso o meu sangue. Fluindo nas minhas veias, então, era remédio amargo contra um profundo autodesprezo. Se sou capaz de degradar tanto álcool, dele me abstendo posso também fazê-lo com todo o meu remorso - tenho fígado para isso - e, assim, não vou caluniar as minhas mais elevadas esperanças.

JBQ: E esse título vem de onde?

JBK: É a palavra para um determinado afeto - que nós, ocidentais, compreendemos por "raiva", "cólera", "fúria" - na cultura Tupi. Tomei contato com essa expressão no livro "Gentidades", do Darcy Ribeiro, um dos poucos intelectuais brasileiros que me interessam, em um ensaio sobre a tragédia da vida de um índio Kaapor chamado Uirá, que enfrentou até à morte a nossa sociedade para viver a sua experiência transcendente.

JBQ: E o como tem sido a recepção da crítica?

JBK: O universo dos meus ouvintes se circunscreve, praticamente, dentre os meus amigos mais próximos - e apenas os que têm bom gosto... - o que torna uma avaliação da avaliação sobre mim um exercício temerário. O professor Rudá Ricci disse que "tento escrever difícil de modo que apenas um leitor muito refinado possa entender e talvez nem ele" (não foi literalmente assim, mas fundamentalmente). O que ele, obviamente, colocou como uma crítica. Eu posso apenas tomar como elogio, claro. Taí: se eu ajudar a expandir a compreensão hodierna sobre a estética como sendo uma manifestação do caráter e da personalidade daquele que escreve, já cumpri alguma função social com meu trabalho.

JBQ: Poderia fazê-lo de modo mais objetivo? Falar sobre o disco...

JBK: Vou pontuar para ficar mais claro:
1. "Além de Mim": Mais uma das canções que escrevi pensando no interlocutor como minha filha, apesar de valer para a reflexão de qualquer um. É uma mui honesta reflexão sobre a experiência de ser pai - mas não apenas, de outras dimensões da minha vida até aqui também - e vê-la crescer, reaprendendo tanta coisa sobre mim... Foi a penúltima letra a ser finalizada, apesar de ter o arranjo todo na cabeça já há algum tempo. O título é propositalmente o mesmo do álbum anterior, para ligá-lo a este, sendo a sua consequência.

2. "Hatüey": É um ataque ao estado da moral hegemônica. Enquanto não ataquei o cristianismo, e tudo o que é podre que dele escorre, eu não pude ser honesto comigo mesmo - isso foi o que fiz durante um tempo. Logo eu, que me declaro ateu com convicção e boa-consciência desde a infância... Mas isso, claro, não poderia ter passado impune. O único momento em que baixei a guarda para esse veneno do espírito, o cristianismo, foi quando em um relacionamento breve e febril com uma certa garota lá de Goiânia... um sinal do meu próprio desequilíbrio de então. É uma valsa, mas era pra ser também uma referência à musicalidade indígena, que vocaliza dissonâncias que apavorariam um coral casto de qualquer igreja. Que assim seja! Na abertura, evoco uma imagem de uma passagem do Zaratustra; ao final, a história do lendário índio da América Central que se recusou a ir para o ~paraíso~ junto aos espanhóis, preferindo a fogueira... Estes índios orgulhosos! Bem assemelham-se me aos gregos clássicos - apenas a revolta daqueles escravos de má-consciência, apenas aqueles cristãos, que um dia ainda servirão de pesar e lamento por sobre a história da humanidade na Terra, poderiam fazê-los tombar. Que aprendamos a voar mais alto, pois!

3. "A Minha Casa": Foi uma das primeiras a serem escritas, num fluxo turbulento de letra e música, cada qual vinha a cada curva formando esse rio largo que deságua num mar de 2 minutos de barulho antes do silêncio. Tem tantas referências do Zaratustra que eu aguardo algum leitor - lanço o desafio - vir torná-las públicas! É um dos meus melhores arranjos de guitarra, melodia e lírica. Um feito e tanto de canção, do tamanho do meu orgulho.

4. "The Convalescent": Os pensamentos precisam escapar do corpo de alguma forma... Alguns segredos, incontíveis como são todos, merecem ser ditos em códigos - numa outra língua que poucos dominam, deveras! E, generoso que sou, lego à humanidade tal petardo de versos em língua inglesa. Tais foram brotando de rimas zombeteiras, que ajuntava por pura diversão, até que crescera uma árvore tenebrosa que lançou por sobre mim a sua sombra. Nela subi e cheguei aos céus; dela desci com o sentido da Terra. Não tive revisão da letra. Incorri em algum equívoco gramatical, alguma questão de ordem de coesão e coerência? Sejam generosos, amigos... se eu merecer!

5. "Do It Yourselfie": É da época do "Além de Mim" (2014). A última estrofe já estava escrita há muito tempo; tinha toda a música na cabeça, mas não me satisfazia nada do que colocava em palavras... não estava claro nem mesmo para mim o que queria ser dito. Geralmente, o tempo cumpre bem esse papel de desanuviar o céu; tornar claro o escuro; trazer à tona o abissal. É a canção mais política do álbum, a 3ª pessoa na letra não fala sobre mim, especificamente, apesar de rir-me com sua autoironia em alguns momentos, tenta captar o espírito de nossa época e apontar o caminho para transcendê-lo.

6. "Menina do Rio": Um belo exercício de estética no qual redimo Caetano por servir de experiência audiofônica aquele Estado que é um dos mais monstruosos, Israel. Quase joguei essa canção fora de última hora. Não o fiz por pura vaidade - adorei as imagens que nela lancei e a rima do refrão não se repetiria nunca em outro contexto. Sobre ele, um silêncio obsequioso. Fundo de lago é enlameado, todos sabem. Foi ali que me lancei, no lamaçal dos enganos. Em todo caso, uma ótima canção, em forma e conteúdo, pra mostrar a minha força

7. "Eu Só Sei Ser Quem Eu Sou": É a mais curta do álbum, não tem introdução - quer ser direta, objetiva, honesta consigo mesma. Ali estou me redimindo - aliás, no álbum todo. Os meus enganos, minhas recusas, minhas fraquezas... É onde coloco o verbo no imperativo, reencontro a mim mesmo na potência da minha vontade: cala-te, vaidade jocosa; ironia vulgar! Alguns poderiam se opor dizendo "eu sei ser quem eu quiser". Noves fora a desonestidade dessa falácia, o que dizem os outros, vejam bem, não me interessa.

8. "A Ponte": Uma ode a Zaratustra. Evoca novamente a mitologia grega e todo o seu universo de sentidos - absolutamente diverso da miserável moral hodierna. Nós somos mesmo um fim: o tempo, aquele rei, dá testemunho do nosso decaimento, mas não vou caluniar o sentido da Terra! Falando da música, o seu ritmo mesmo evidencia o trotar de quem avança por sobre um caminho sem volta. "Apenas navegar..."

9. "Aurora": O "batizado" lírico de minha filha. Aqui falo dela da forma mais direta. Estávamos no litoral sul da Paraíba quando os primeiros versos, já dentro dessa métrica, foram soprados pelo mar para dentro da minha cabeça enquanto via Aurora absolutamente inocente, brincando na areia... De repente, realizei a importância de um ato simbólico que, em signos, a protegesse, resguardado de toda moral mesquinha; de toda má-consciência; de todos os afetos tristes; de todo o cristianismo, enfim.

10. "Elegia": Foi a última a ser escrita, apesar de, como ocorrera com outras, ter já seu arranjo determinado. Faço uma digressão por sobre a minha própria história: voltei ao tempo em que morava na asa sul; voei de volta à asa norte; sem deixar de passar pela minha primeira experiência no Guará. São versos muito figurados, convidam a todos à reflexão, todavia, não deixo de fazer a minha própria: sobre os contextos de minha vida que me trouxeram até aqui, sobre os caminhos, curvas, desenganos... Arrisco até um verso autoral em alemão - até onde sei, não incorri em nenhum erro estrutural - com a humildade de quem quer aprender, com o orgulho de quem tem coragem de tentar. O refrão é de um aforismo que rascunhei na época em que estava a ler o "Humano, Demasiado Humano" - sugere um caminho para a autosuperação. Um áureo tempo, um sopro de um vento que vem do futuro.

E quem diria?
Aprendi a rir, amigos! Aprendi a rir!

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