domingo, 14 de junho de 2015

O Dia do Sol

É domingo, quase oito horas da noite, acabo de chegar em casa de um dia no parque com a minha família e, agora, na minha abençoada solidão, me surge a questão: cafeína ou álcool?
O álcool me derruba como Muhamad Ali; como touro contra toureiro experiente: vou à lona - à lama - numa "vulgar rapidez", como diria Nietzsche.
A cafeína contribui para o despertar dos meus sentidos desde sempre, evita muito desgaste, muito dispêndio de energia psíquica e muitas válvulas tensas que o álcool não se envergonha de libertar numa sangria. De modo que apenas com o mais elevado conhecimento de si o álcool deveria ser utilizado, como uma espécie de bisturi, um instrumento de uso pontual para extirpar determinada sombra de nossa psique. Deveria ser de corrente estranhamento tal substância ser tão comum, tão vulgarizada ao mesmo tempo em que outras psicoativas são demonizadas e perseguidas - ainda que, provavelmente, sejam instrumentos bem mais efetivos e importantes para o fortalecimento da personalidade de alguém. Pois bem: hoje vou de cafeína.

Os anglófonos guardam mais justiça ante a história e a genealogia das mitologias: chamam este dia de "sunday" - o "dia do sol" - tais quais guardiões dos antigos cultos pagãos. Os cristãos, estes miseráveis cretinos que a tudo mancham com seus dedos e palavras podres, como não poderia deixar de ser - não poderiam proceder de outro modo - falsearam o santo dia como domingo - do latim "dominicus", o "dia de deus" - e com este lance linguístico afastaram a humanidade do sentido original deste dia de sagrado descanso: a celebração da força e de tudo o que é forte na vida, levando-a além. E tão logo foram se esconder com a sua infinita vergonha dos seus desejos mais profundos; com seu ódio indisfarçável contra a felicidade mais ingênua; embebidos de veneno europeu (que o pregado havia transformado a partir da água) cambaleantes, agressivos e depressivos, nas suas naves escuras, suas cavernas, suas igrejas - "túmulos e monumentos fúnebres de deus!". O domingo é, assim, o dia de se ajoelhar ante este deus impotente, pois, invejoso, vingativo, de um amor inseguro; um deus que, se existisse, haveria de ser combatido com a mais intensa força pelos seres potentes deste universo!

Daí facilmente se depreende todo o sentido das atuais políticas sobre drogas: tudo o que for útil ao poder será liberado e, quando faltar qualquer pudor, fartamente estimulado - como é o álcool no Brasil. Poderá vir um dia em que o poder necessite de pessoas mais dóceis e risonhas: a maconha então seria vendida ao lado das balinhas e chocolates nas padarias. Um atentado contra a cafeína: utilizá-la como chicote no lombo dos escravos: em todo lugar em que há trabalho, há café... É preciso compreender a gênese deste poder e o que ele quer que as pessoas façam: por exemplo, o álcool é hoje vendido nos postos de gasolina e não me recordo de ficar a saber de uma sociedade com tantos mortos por violência no trânsito causada por motoristas alcoolizados. Todo o arranjo político no Brasil precisa de uma sociedade brutalizada: num Estado de selvageria - isso é sabido da ciência política desde os contratualistas - como nos assemelhamos, não há o menor vulto da ideia de evolução, de progresso da associação dos indivíduos; todos se agarram aos parcos recursos que possuem (e que, por eles, são possuídos) com extrema violência. Ora, o que é o discurso político conservador brasileiro e a violência difusa em nossa sociedade (em várias formas - simbólicas e físicas) senão dois lados de uma mesma moeda? É necessário que seja assim: de outro modo, os arranjos superestruturais seriam alvo de mudanças e poderíamos ameaçar poderes maiores que o nosso - geopoliticamente falando. Nossa estupidez é maravilhosa: serve como laboratório para testes de novíssimas tecnologias de controle e disciplina; mantém uma incessante produção de trabalho escravo, enfim... poderia defender esta tese com mais profundidade, mas o café já ataca o suficiente meu fígado.

Que deus está morto nossa razão o sabe muito bem. O que me importa? O aprendizado do inverno: é o sol que nos aquece, tolos! É a força que leva a vida acima e além - não a fraqueza; a afetação; a compaixão; todos os "espíritos do peso"! Então, como superar as sombras de um deus morto? Comecemos assassinando a vergonha de nossos próprios desejos! Cuspamos para fora, tal qual o fizera Zaratustra, a inveja de uma felicidade ingênua! E cuidemos, cada qual, dos nossos caminhos.

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