quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Adeus, 2015!

Se 2015 fosse uma pessoa de quem eu pudesse me despedir, consciencioso de um incontornável - adeus..:

Por ti, nutrirei eterna gratidão, minha querida. Poucas pessoas que passaram pela minha vida me fariam olhar para trás com tanta ternura. E, deveras, se houvesse um espelho retrovisor na locomotiva que nos leva ao futuro, eu não poderia evitar de nele mirar o olhar, com um coração tão pleno de anseio como faço agora. Tu, que vieste sob o signo de Marte, o deus da guerra; vieste para reiterar: o que não me mata - me fortalece; tu, que vieste me desprezando - como só os grandes amantes sabem desprezar - intumesce meu espírito com mel de floradas silvestres, suavemente cortante como só a vida pode fazer. Como diria Zaratustra, o que sabe do amor aquele que não sabe desprezar o objeto amado? O grande amor tem seus caprichos, assim, ele guarda o seu valor.

Por vezes, teu silêncio dilacerara meus ouvidos - eu gritava abrigando-o do frio e me protegendo, me afastando, acautelando, de um terrível, horrorífico, auto-desprezo. Pois bem: aprendi a ouvir a beleza da sua melodia com os olhos - a mais bela canção que pude vislumbrar até aqui. Não à toa a mais bela melodia reconhecida pela humanidade foi elaborada por Beethoven já surdo: precisamos perder os sentidos para superá-los. Uma parábola.

Em janeiro, a saliva quente do teu mar lambia minhas pernas na Paraíba. Zaratustra era a rocha em que eu me assentava - não fosse isso, não seria eu tragado para as suas profundezas, sem volta? Tive fôlego, aprendi a fitar o abismo - ele fugiu de medo quando o fiz olhar-se a si no espelho... 

Voltei para a Paraíba novamente, desta vez sem a Aurora, e, na volta, lia "Da Morte Livre" no momento exato em que entrávamos numa turbulência... meu arrepio deu testemunho: ainda não era a hora certa de morrer.

Em fevereiro, cortei o açúcar do café: foi o estratagema encontrado para expurgar-me o amargo de mim mesmo. Daí em diante, ao longo do ano, forcei uma interessantíssima mudança no meu metabolismo: aboli o açúcar; troquei gradativamente o chocolate por frutas; o mel passou a fazer parte da minha dieta diária. O chocolate, quando não muito refinado, de alta qualidade, me enfastia no primeiro toque da língua. Fora isso, um silêncio terrível: era a minha hora mais silenciosa falando no meu ouvido. E um terrível remorso me puxando para baixo... Recolhimento era mais que recomendado - era necessário.

Já em março, o céu desanuviado abria cintilante para mim: sob o seu azul eu vislumbrara a beleza da tragédia - como ela nasceu? Essa resposta, mais do que no livro, tive que encontrar, novamente, em mim mesmo.

Abril: a ilusão da tua belíssima aparência me cativara; uma musa, uma sereia estirada na beira do Paranoá, soprou com sua força apolínea uma canção para o meu peito. Que alegria! A primeira do ano, deveras. A mudança do tempo, como era de se esperar, me presenteou com uma leve sinusite, que durou menos de uma semana - nada que se compare com a minha claudicante saúde em 2013 e 2014.

Em maio, vieste para cobrir a noite com um luminoso cobertor de estrelas - os dias não tão frios quanto o usual: já aí se anunciava um ano mais quente que o comum. Assumi a função de Coordenador Pedagógico - para a qual havia sido "escolhido" no início do ano, na mais absoluta falta de interesse do resto do grupo de participar do caos administrativo, pedagógico e financeiro que constitui a instituição de ensino de que faço parte. Minha vaidade, meu orgulho, minha coragem, minha força, meu espírito: foram todos colocados em teste a partir de então - nada mais humano. Humano demais! Fui lançado numa fornalha, forjado contra uma estrela de diamante - resistiria? Até então, eu não sabia.

Como as aves brincam no céu azul-claro de junho - como numa dança alegre -, também eu o fizera: descobri alegremente, com desenvoltura inesperada, que eu também sabia dançar com os meus problemas, meus trabalhos, meus deveres! Que sabedoria alegre! Mas, nem por isso, me permitia descuido - contudo, para o meu gosto, certas coisas deveriam parecer difíceis de serem feitas - apesar de serem fáceis; outras, exatamente o contrário.

Confesso que neste exato momento sou incapaz de me recordar do meu aniversário. Julho foi cansativo - era o fim dos trabalhos que naquele momento me sobrecarregavam. Também aí, como em várias dimensões da vida, passamos pelas 3 transformações: eu era um camelo. De repente, vi a mim mesmo num deserto; saltou de mim um rugido: me tornara um leão - ali, quanto à dimensão do meu ofício. Uma nova aurora viria a raiar a partir de então: e entre, eu e meu grupo de afinidade, começou a germinar uma semente de um projeto; e intervenções pontuais que viriam a ser planejadas e executadas nos meses seguintes, atestando a nossa competência, a nossa habilidade. No recesso, no entanto, em poucos dias dou as lapidadas finais nas letras e arranjos e gravo o álbum deste ano, o poderoso, furioso, "Iñaron" - que presta um testemunho poético muito mais sutil das experiências deste ano até aqui.

Fora do trabalho, tudo permanecia árido, mais árido que o clima venturiventiano em agosto: eu estava mesmo num deserto. Apenas agora, por fins de dezembro, posso dizer ter encontrado alguma umidade - um oásis, talvez. Neste deserto, apenas eu e minha sombra... ai, "as histórias que posso contar!"

Em determinados desertos as noites são gélidas, a despeito do calor do dia. Era assim também comigo: setembro, apesar de insuportavelmente quente, dentro de mim era gelado. Também neste mês dormi uma noite fora de casa: mas o frio não me abandonava... Decidi, num lance egoísta, fazer uma viagem para um lugar mais quente: juntei meus dias de folga que sobravam e, na primeira quinzena de outubro, passei quatro noites no paraíso - Pipa, Rio Grande do Norte. As impressões deste momento estão por aqui.

Por pura sorte, uma semana antes de viajar consegui encontrar um novo lugar para morar e saí do Guará - para nunca mais voltar...? Que apenas na memória eu guarde algo daquele tempo tenebroso - e vim tomar posse do meu palácio - um palácio itinerante, deveras! - em Águas Claras.

Aí então reconheci, me dei conta de que a felicidade é, hoje e desde sempre, uma coisa egoísta: toda a moralidade que prega que "a alegria deve ser compartilhada", no fundo, me parece ser um sussurro desesperado de quem, fundamentalmente, não crê na sua felicidade - pois essa gente precisa "crer" em algo, sempre - e arrasta para ela algumas tristes testemunhas, que se veem forçadas a reconhecer firma de tal alegria - uma cartorialização dos afetos. Como disse o Andarilho, "a melhor coisa me seria repugnante, se alguém tivesse que partilhá-la comigo".

Com o coração mais quente - já havia voltado a chover em Brasília... - retornei do Paraíso para, mais um vez dentre tantas, descer ao Hades... Já era novembro. Lá, tive que fechar os olhos novamente para beijar a minha Medusa. Bom que fechei os olhos: pude sentir o seu gosto de pedra na boca (os sentidos devem ser ignorados e postos em anteparo contra outros, sempre meio desconfiados - "coração atado, espírito livre" é a fórmula). Esta foi a segunda noite fora de casa do ano. Não suportaria fazer isso de novo, contudo, valeu a experiência - de que outra forma eu poderia firmar-me como sou? Afirmar o que eu quero? Confesso: minha cama - a minha concha. Não vou adornar pescoços lânguidos; não vou lançar-me aos porcos! E se à minha volta há um visco asqueroso: que melhor forma haveria de manter-vos à distância, afetados desprezíveis?!
 
A Medusa fugiu, cheia de ódio, quando lancei contra ela um espelhinho inocente... Mal sabe ela que vivo eu numa casa espelhada - cada parede daqui dá testemunho sobre quem lhe fita! Ela não suportaria adentrar a minha casa, deveras; também, pois, já não é bem-vinda. "Quem aqui entra me dá um honra, quem não entra me dá prazer", está ali na minha porta.

Finalmente, chegamos em dezembro, e não posso evitar de olhar para trás novamente movido por amor, minha querida. Há exatamente um ano eu terminara o "Além de Mim", ainda muito impactado pelo "Ecce Homo", e lancei para mim uma meta: mergulhar na obra de Nietzsche no ano seguinte, de modo que eu pudesse, nadando neste mar, fortalecer as musculaturas do meu espírito - sabendo dos desafios contra os quais eu seria lançado pelo meu remorso, frustração e todos os outros atavismos do espírito do rebanho... E, vejam só: já não posso dizer de qualquer outro ano de minha vida o que eu diria de 2015: tudo o que vivi aqui redime meu passado e justifica meu futuro; tudo o que fiz este ano - devo estar soando repetitivo a esta altura... - o fiz por amor à vida, amor ao meu destino, de onde brota um deliberado orgulho. E, "tudo o que se faz por amor, está para além do bem e do mal".

Já vai alta a madrugada... não precisa dizer palavra! Adeus, meu amor! Como disse em outra oportunidade, sobre teu túmulo lancei sementes de flores e frutos - eu te honrei, da forma como pude. Nos veremos novamente - pintados nos quadros das paredes da memória... guarda contigo teu último beijo que eu guardo comigo meu afago. Será melhor assim!

Seja bem-vindo, estranho 2016! Traga o que trouxer: eu o honro - com minhas cinzas, minhas chamas, meu carvão, meu calor; com tudo o que sou, ardendo por amor.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Paráfrase II

Participo desses grupos de Whatsapp e dessas confraternizações com os olhos bem abertos: essas pessoas não perdoam que eu não inveje suas pequenas virtudes.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Solstício de Verão

Adentro aos portais do verão, a estação da luz; atravesso o solstício que se acena nos próximos giros dos ponteiros do relógio, pela 26ª vez nesta vida. Amanhã será o dia mais longo do ano. Depomos contra a vida, ofendemos o sentido da Terra, apreendendo maldade nesta metáfora. Contudo, quê posso fazer a essa altura da noite - arrancar-me o coração do peito? Num descuido, eu o faria, talvez - como já fizera uma ou outra vez. Amarrá-lo com fios de aço, apertar suas artérias e veias de modo que sangre o menos possível - também já o fiz muitas vezes, faço-o com ainda mais força agora, deveras. Depois de hoje, amanhã será o dia mais longo do ano... E já tive tantos outros - e ainda mais cedo este ano...
 
Há pessoas que por uma ventura da existência, um acaso fisiológico, um metabolismo do espírito, vivem muito em muito pouco tempo; têm experiências diversas, enchendo todos os bolsos do dia, reiteradamente. Assemelham-se me a musaranhos, ou qualquer outro mamífero primitivo, que têm de viver correndo atrás de alimento o dia inteiro, todos os dias, e se colocam sempre em risco por uma fatia de vida, uma migalha, e mais outra; agora, daqui a pouco; aqui e ali, "na casa de quem? a que horas?"; etc. E, vivendo muito irrefletidamente, aprendem muito pouco, pois, têm pouco tempo para si mesmas. O que, em todo o caso, não é nem bom nem mau, necessariamente. Simplesmente é assim.
 
Eu, que sou um predador, tenho porte - tamanho e força - a natureza, em tempos longínquos, já foi mais generosa para o meu tipo: hoje, preciso dispor de intercaladas longas estações - de caça e de hibernação. Aquilo que eu tomo para mim, destroço, dilacero; dela faço minha carne, meus ossos, minha tez - digiro longamente, absorvendo tudo o quanto me for necessário. Eu, um urso polar - tão branco e frio quanto o gelo; tão glacial que, desconfio, queimo quem me tocar inadvertidamente -, desperto no verão para caçar o meu alimento. Eu, que há dois verões decidi que ainda valia a pena continuar vivo, adentro essa madrugada não sem salivar sedento pelo meu banquete; não miro as estrelas - que, contra todo o senso comum, giram orquestradamente no espaço ao meu redor - sem sangue nos olhos. Lascivo? Virulento? Talvez, provavelmente, melhor que seja assim.

Sepulto 2015 numa cova profunda, por sobre a qual lanço desde já sementes de flores e frutos deveras perfumados e nutritivos, no coração - aquela terra em que ninguém pisa.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

"Coração Atado, Espírito Livre"

Há pouco ouvi uma música impecável do ponto de vista da produção; um funk(-rock?) carregado de teclados e sons sintéticos, algo que lembrava os anos 1980; uma variação rítmica impressionante para apenas quatro minutos, contra a qual a nenhum ser humano é dado evitar a sedução da sua cinestesia, colocando-se em movimento; já a havia ouvido antes num evento no CEF 14, mas não conhecia o seu nome: "Uptown Funk", de um músico judeu, britânico radicado em New York, Mark Ronson. A monocórdica linha do baixo e algo do seu estilo rítmico me lembrou "The Call Up", do Clash. Fui conferir the lyrics...

Como pude me permitir fazer uma referência supostamente tão elogiosa a tal canção, sendo que, do ponto de vista do conteúdo simbólico das letras, ela representa, talvez, o mais absoluto lixo produzido pela espécie humana? Pois, era eu imitando o raciocínio do rebanho. Mark Ronson: um playboy ocidental, judeu conservador - provavelmente a variação mais asquerosa da espécie humana por sobre a face dessa cansada Terra, que produz a assim chamada música pop - esse alimento para o espírito do rebanho... Nietzsche ficaria horrorizado: a crítica que ele faz ao espírito democrático - algo que hoje, envergonhados que nos tornamos, chamaríamos de "crítica da cultura de massa" - é assustadoramente certeira. O "povo" não consegue ir muito longe, atrapalhado que fica ao apoiar com os quatro membros no chão... não aprenderam a ficar de pé e correr - que pena!

A boa música - a música que é, ao mesmo tempo, atestado, testemunho e instrumento de elevação do espírito - deverá, sempre, ser a música que não entra nos ouvidos do rebanho. Eles teriam que tê-los destroçados, aprendendo a ouvi-la com os olhos...

Poucas vezes vi na vida uma mulher tão bonita. Absolutamente tudo nela era impecável; a natureza cuidou de superar a minha imaginação em todos os mínimos detalhes - com efeito, a cada novo olhar lançado, das mais diferentes perspectivas, maravilha-me com uma nova beleza descoberta. Todavia, quando fui aproximar-me do conteúdo social que conferia humanidade àquela sublime experiência estética... indescritível fora a minha frustração. 

Quem nunca passou por experiência semelhante? Comentando-a, o rebanho me diria: "Bastava ignorá-la nos aspectos mais asquerosos, fingir algum interesse nos seus vícios e pobrezas de espírito - pois, o nosso interesse é bem outro..."; "Não era preciso ter nenhuma espécie - ainda que fantasiosa - de comunhão de ideais, nossa atração por ela seria física, por ela bateria mais forte o nosso coração...". Assim me diria o cínico rebanho.

Também o faria quanto à música: "Basta-nos sentir a batida - feel the beat! -, ouvir a música com o coração..."; "Não podemos levar tudo tão à sério... é só música." - assim escorreriam das suas bocas, em meio a bile viscosa, as palavras do rebanho. Pois, os escravos, o rebanho, dissociados que são, são capazes de dissociar a vida; quebrantar a realidade e engolir cacos de vidro sem sangrar suas entranhas - eles os moem, deveras. Tomam das pessoas e das coisas apenas aquilo que lhes bastam - não sem um elevado grau de violência: pois eles se vingam de tudo aquilo que os obriga a dissociar; no fundo, os faz lembrar que eles mesmos, não fosse por sua dissociação psicológica, não suportariam a existência absolutamente desprezível a que estão condenados.

E não é uma canção perfeita um ideal tal qual a mulher perfeita?

Nós - os que, ao mirar a imperfeição, sabemos vislumbrar o conteúdo que a preencha (e este conteúdo é um vir-a-ser!); nós, os que somos por inteiro, não meras máquinas sob a égide de uma vontade externa, pois, não somos escravos, não comemos vidro, pelo contrário, devoramos integralmente um espelho - não queremos - não esperamos! - das mulheres, da música, da vida, enfim, algo que enfastie nossos sentidos, que faça salivar os cães selvagens da carruagem das nossas paixões, e faça com que o nosso coração se arraste para longe do nosso cérebro - trajetória ao fim da qual terminaremos esfolados, tanto nosso coração quanto nós mesmos, o espírito. Qualquer evento ou coisa que atente contra este princípio acende as tochas da nossa desconfiança - assim o quer o nosso espírito, que preconiza a liberdade ante a segurança. E é por isso mesmo que medimos milimetricamente o quanto soltar as nossas rédeas - afinal, quer aventura maior para o nosso orgulho, há desafio maior para a apreciação estética da vida na Terra do que remendar os cacos e criar beleza de um coração imperfeito?

---
"Coração atado, espírito livre - Quando se amarra e se mantém preso o próprio coração, pode-se dar ao espírito muitas liberdades: já o disse uma vez. Mas não me acreditam, a menos que já o saibam."

"Uma vez tomada a decisão, fechar os ouvidos mesmo ao melhor argumento contrário: sinal do caráter forte. Portanto, uma ocasional vontade de estupidez."

"As grandes épocas da nossa vida são aquelas em que temos a coragem de rebatizar nosso lado mau de nosso lado melhor."

[Aforismos 87, 107 e 116, "Além do Bem e do Mal", capítulo 4º, "Máximas e Interlúdios", Nietzsche.]

domingo, 13 de dezembro de 2015

Para Um Discurso Convexo

 Comentário a respeito disso:

Não era justamente isso o que clamavam alguns que se dizem socialistas - o povo na rua, uma militância alegre - impossível não recordar também daquele adjetivo jocoso: "festiva" -, entusiasmada? Não é esse, precisamente, o povo brasileiro? Há alguma outra máscara que consiga cobrir a maior parte da horrenda face do Brasil: discurso vazio, sem muito compromisso com a verdade, e carnaval? 

No fundo, em que se difere, sei lá, de qualquer coisa que os grupelhos estudantis fazem? Bater tambor, com direito a frase de efeito e tudo o mais - "pisa ligeiro, pisa ligeiro...", ou aquele outro igualmente desprezível, "quem não pula é machista" -, não era a isso que acenávamos, já ali em 2010 (pra não ir muito longe)? 

Estão todos produzindo um discurso côncavo, cujo foco desde já se localiza dentro de si mesmo, só atinge os seus. Nada mais eficiente para o status quo da verdadeira política, a economia.

O rebanho, vejam só!, apenas se diferencia pelas cores. E haja matiz para cobrir um debate que já não existe, reduzido à cinzas!

No fim das contas, um único aspecto - alguém aí já lembrou - leva a política para essas manifestações: a presença ostensiva do aparelho repressor. Ali vemos a verdadeira política: quando a polícia entra em ação.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

1+1=1,2, no máximo 1,5

Um casal nem sempre - ou, melhor dizendo, quase nunca - representa uma soma de duas potências humanas. Nem tanto pela forma do casamento em si - se bem que, a uma distância certa, adequada a cada caso, qualquer relacionamento humano é saudável (penso na minha mãe... como nos faz bem 2 mil quilômetros de distância!) -, senão e sobretudo por uma questão de hábito e estilo de vida hegemônicos entre os indivíduos. Hábitos de vida ou de consumo - que diferença há aí, senão de uma linguagem hipócrita? A "lei" da conservação de energia - e o que na existência inteira exige mais energia que o aprimoramento do espírito? Se eu pudesse deixar um testemunho à humanidade seria: aprenda a ler, humanidade! - leva à adoção de hábitos letárgicos, ao consumo de tudo aquilo dotado de virtu dormitiva: o consumo da opinião fabricada - e há uma infinidade delas nas prateleiras da ideologia! -, de modos de vida pré-concebidos - "endivide-se: é o único caminho para a felicidade! Que importam a autonomia, a liberdade, a consciência, a força, a honra ou o orgulho de um intelecto vaidoso? Seja igual a todos, assim será mais fácil passar por entre as portilhas estreitas da vida!": assim falam os lobos para seduzir um rebanho de cordeiros. Que engordem para o meu banquete! Pensar no seu sangue e carne salgados já me leva a salivar. E que tenho eu com os lobos? Eles são meus cães!

Portanto: junte-se duas pessoas que - elas mesmas sendo a metade, ou ainda (bem!) menos, do que poderiam ser - e, tornando-se este o padrão, temos uma marcha, uma procissão de perder de vista, um espetáculo de mediocridade grassando por sobre a face da Terra. "Quando vi um santo cruzando com uma gansa a Terra me pareceu um sanatório", assim falou Zaratustra.

E bem deve residir aí, no anseio de gente-pela-metade por suas "caras-metades", uma preguiça e uma covardia jocosa, deveras.
Um indivíduo fatorial - 1! -? Um indivíduo elevado à ele mesmo - 1¹ -? Uma "roda que gira sobre si"? Apenas posso encontrar uma equivalência para tais questões no espelho. Todavia, uma imagem, uma projeção da luz, sobretudo, daquilo que ainda não existe.

Quis encontrar alguns pares para boas conversas... melhor sorte na próxima! 

"Fala o desapontado - "Eu esperava por um eco, e ouvi apenas elogio. -" [Aforismo 99, "Além do Bem e do Mal", Nietzsche]

O Momento do Salto

20 páginas de "Além do Bem e Do Mal" e eu já posso garantir não ser o mesmo ser humano de antes... A virtu anti-dormitiva do livro me provoca o instinto de conhecer; a tentação travessa de mergulhar no livro me faz folheá-lo displicentemente, até encontrar o capítulo quarto - "Máximas e Interlúdios" - uma gruta de onde brotam a mais límpida água e as mais aromáticas flores de toda a natureza; um recanto perfeito pelo descanso, contemplação e júbilo diante da vida inteira...

Com frequência encontro eu mesmo, nas minhas caminhadas noturnas por infames bosques da vida, flores que fariam a humanidade superior inteira enternecer, decerto. Afinal, "também o concubinato foi corrompido - pelo casamento." [ABM, aforismo 123.] E, não por menos, contra elas pesa uma mesquinharia moral que as crucifica. Os hodiernos - que querem fazer parecer a si mesmos ante os outros, antes a nós, os superiores, importantes por sua renúncia diante da vida; querem parecer fortes por castrar sua coragem e, ainda assim, fazem pose de valentes (há toda espécie de recurso retórico para tal: "Eu respeito a escolha das pessoas, mas não posso concordar com tal coisa [o "homossexualismo", por exemplo]", "Tudo é racismo. Daqui a pouco vai ser crime ser branco", "Ser bom é fácil, o difícil é ser justo", e toda uma infinidade de "etc.s'") - com sua pele fina que disfarça mal o aspecto asqueroso das suas entranhas, querem angariar apoios entre os seus pares - e eles servem para outra coisa que não aglutinar o rebanho, gado desprovido de conteúdo, ovelhas de si mesmos? "Os apartados do rebanho devem sofrer", assim reza o orgulho do gado.

E aqui cabe a observação: não nos tornemos semelhantes aos monstros que combatemos [ABM, aforismo 146] - para tal, em determinado momento, devemos desviar o olhar do abismo... não seria este, precisamente, o momento do salto?

A doutrina da defesa do livre-arbítrio - uma paz entre os instintos, uma equação de valor positivo dos afetos - não era mesmo uma máscara para a ignorância de si mesmo? "Conhece-te a ti mesmo" quer dizer "deixe de ser interessante para ti mesmo"? 

Aqui vai um microscópico testemunho de filiação ao partido dos que afirmam ser esta a inesgotável obra nietzscheana; o mais elevado atestado de estilo e gosto que a humanidade testemunhou até aqui.

domingo, 6 de dezembro de 2015

In Vino Veritas

Minha melhor companhia? Eu mesmo.

Minha maior amante? Minha sombra.

Meu melhor amigo? Gaúcho com 10% de grau alcoólico.

Meu maior orgulho? Minhas superações.

Minha maior vaidade? Ser quem eu sou.

Minha maior honra? Meu ofício. 

Minha obra viva? Minha filha.

Minha obra póstuma? Minha arte.

Minha maior felicidade? Estar vivo para conhecer. 

Minha maior tristeza? Ver de perto aquilo que é pequeno.

Meu templo? O silêncio.

Meu palácio? Minha solidão.

De Tanto Descer ao Hades Por Um Caminho Sombrio...

Ontem à noite findei a leitura do "Humano, Demasiado Humano II" - que me acompanhara desde setembro em algumas descidas ao Hades e outras visões intranquilas -, uma compilação de "Opiniões e Sentenças Diversas" (em outras traduções: "Miscelânea de Opiniões e Sentenças"), publicado em 1879; e "O Andarilho e Sua Sombra", publicado em 1880. Em 1886, Nietzsche, na reedição de suas obras anteriores, quando escreve novos prefácios - que são parte importante da leitura de tais obras desde então e para sempre -, adjunta os dois conjuntos de aforismos, que antes foram publicados como apêndices ao "Humano, Demasiado Humano", em uma única peça. 

O livro divide-se apenas entre as duas partes; dentro de cada uma o fluxo de temas diversos é a regra, apesar de ser possível identificar conjuntos de aforismos que tratam dos mesmos assuntos. Em "O.&S.D." há uma explícita continuação das ideias do livro anterior, "HDH". 

Algumas passagens que me foram memoráveis: os comentários acerca da música de Beethoven - aquele incrível exercício poético de vislumbrar um Beethoven ressuscitado, assombrado ao ouvir sua obra executada pelos mestres póstumos ("Os vivos têm razão. Tenham razão e me deixem voltar para baixo."); outros punhados de ideias e metáforas que acenavam ao Zaratustra e que viriam a ser utilizadas na sua constituição; dois aforismos referentes ao "Hades" - esse lugar sombrio da nossa própria psique - o "deixando no Hades" - particularmente assustador para mim naquele momento - tivesse eu mesmo lido-o dois ou três dias antes, não teria tentado levar à superfície um cadáver putrefeito que por lá encontrei, no fundo de mim mesmo... E disso não faço um arrependimento, uma penitência, pelo contrário, é apenas a constatação de um engano, algo que sujava a água do meu poço, e que logo foi remediado: bem o fiz e igualmente ao, levando-o à superfície, reconhecer sob a luz da consciência o aspecto asqueroso e terrível daquela figura, deixando-o descansar e apodrecer na margem do meu mar, fora das minhas águas - para onde o lancei com um só golpe - aqui fala o meu orgulho! -; e a "descida ao Hades" - aqui Nietzsche e eu compartilhamos do júbilo da existência que só pode vir a ser em nós mesmos com a visão do mais terrível que há na vida... para tal, é preciso ser forte e saber superar a visão de horror e a experiência da mais terrível e lancinante dor. Ah! Os vivos, os hodiernos... como parecem pálidos, ávidos de vida! Enquanto que, para mim, esse alemão morto há 115 anos parece tão inescapavelmente vivaz, uma inoculação contra a qual não há nada que a neutralize, uma injeção de vontade de afirmar a mim mesmo

Matei alguns carneiros - e mais - meu próprio sangue verti para poder superar essa fase. Chegamos então ao crepuscular "O Andarilho e Sua Sombra" (preciso disfarçar que foi daí que assimilei a forma para escrever o meu próprio diálogo com minha sombra? Todavia, é um expediente belíssimo e muito presente já nos textos da antiguidade clássica - de Platão ("A República") a Esquilo ("Prometeu Acorrentado"): todos os pelos do meu corpo se eriçaram com o diálogo da abertura entre o andarilho e a sombra... quem não experimentaria essa resposta fisiológica? Quem não tem espírito, deveras.

Daí me recordo agora das críticas à doutrina da abolição da propriedade - que Nietzsche identifica ser uma equívoca proposta política fruto da má interpretação da natureza humana (uma visão binária, dual, que identifica a oposição frontal entre "bem" e "mal", contra a qual a obra inteira de Nietzsche dá testemunho contrário). Para ele, não é necessário ou preciso que se acabe com a propriedade da terra produtiva, mas que não se permitam liberdades econômicas para produzir facilmente grandes fortunas (exemplo que ele mesmo dá: atividades financeiras) ou para não produzir absolutamente nada e viver na miséria absoluta - que gera revolta e violência - aqui fala uma razoável voz radicalmente social-democrata (e não me refiro à experiência histórica da social-democracia: a covardia encampada na política). Em que mundo vivemos hoje senão naquele exatamente o oposto desse? Impérios financeiros dominam basicamente todas as demais atividades econômicas por sobre toda a face da Terra, e uma crescente parte da humanidade experimenta na vida a pobreza mais absoluta... contra toda a magnífica técnica desenvolvida pela humanidade no seu caminho para a luz do conhecimento, a nossa pobreza de espírito depõe contra o nosso devir histórico.

Ah, os marxistas ortodoxos que, ouvindo a voz de Nietzsche, escutam a reação... estes canalhas que nem mesmo a areia do deserto deveria dar ouvidos!

Por fim, aquela belíssima mensagem de depuração da afecção em si mesmo, a busca da "boa vontade" na vida; o alegrar-se com tudo - tendo como pano de fundo a alegria com o conhecimento, proporcionado pelas mais diversas experiências. É a senha de ouro que liberta o homem das suas cadeias para, novamente, percorrer - mais ainda: desbravar - os mais luminosos caminhos que podem haver para a vida na Terra - percorrendo-o junto a sua sombra, a única testemunha possível da felicidade perene que daí advém.

Um sentido de gratidão não me escapa agora, que me lanço na trilogia final da obra Nietzscheana: "Além do Bem e do Mal" + "Genealogia da Moral" + "Crespúsculo dos Ídolos". Ao fim deste ano - que foi o mais pesado da minha vida inteira até aqui - não posso deixar de agradecer à vida por me permitir escalar essa montanha - e haja fôlego e paciência! - e, por fim, ter nas minhas retinas a mais luminosa e tranquila visão do existir. Recobrei a alegria comigo mesmo e com a vida. Atravesso o portal deste dezembro mais forte e seguro do que quando entrei no portal do janeiro passado - e quem sabe para onde o próximo janeiro poderá me levar?! Forte e tranquilo para lá quero seguir; cheio de amor, desde sempre, amor à vida e amor ao meu destino.



"A sombra: De tudo que disseste, nada me agradou mais do que uma promessa: vocês querem ser novamente bons vizinhos das coisas mais próximas. Isso será bom também para nós, pobres sombras. Pois, admite-o, até agora vocês tiveram prazer em nos caluniar. 

O andarilho: Caluniar? Mas por que vocês nunca se defenderam? Tinham nossos ouvidos bem próximos, afinal. 

A sombra: Achamos que estávamos demasiado próximas para poder falar de nós mesmas. 

O andarilho: Delicadas, muito delicadas! Ah, vocês, sombras, são "pessoas melhores" do que nós, já percebo.

A sombra: No entanto, vocês nos chamam de "importunas" - a nós, que ao menos uma coisa sabemos fazer: calar e esperar - um inglês não faz isso melhor. É verdade, com muita frequência nos vêem seguindo os homens, mas não como suas servas. Quando o homem evita a luz, nós evitamos o homem: pelo menos até aí vai a nossa liberdade. 

O andarilho: Ah, a luz se esquiva bem mais frequentemente do homem, e então vocês também o deixam.

A sombra: Com frequência me foi doloroso te deixar: para mim, que sou ávida de saber, há muita coisa que permanece obscura no homem, pois não posso estar sempre com ele. Ao preço do conhecimento cabal do homem, de bom grado seria eu tua escrava. 

O andarilho: Mas sabes tu, sei eu por acaso, se com isso não passarias repentinamente de escrava a senhora? Ou continuarias escrava, mas, desprezando teu senhor, levarias uma vida de nojo e humilhação? Fiquemos os dois satisfeitos com a liberdade que te coube - a ti e a mim! Pois a visão de um cativo me estragaria as maiores alegrias; a melhor coisa me seria repugnante, se alguém tivesse que partilhá-la comigo - não quero escravos ao meu redor. Por isso também não gosto do cão, o indolente parasita que agita a cauda, que apenas como servo dos homens se tornou "canino", e que eles costumam louvar como sendo fiel ao senhor, dizendo que o acompanha como sua...

A sombra: "Como sua sombra", é o que dizem. Talvez eu hoje te acompanhe já por tempo demais? Foi o dia mais longo, mas estamos quase no fim dele, tem paciência um pouco mais. A relva está úmida, estou tirintando.

O andarilho: Oh, já é tempo de nos separarmos? E eu tinha que te magoar ainda; vi que ficaste mais sombria.

A sombra: Eu enrubesci, na cor que me é possível. Ocorreu-me que muitas vezes fiquei a teus pés como um cão, e que tu, então - 

O andarilho: Eu não poderia rapidamente fazer algo para te agradar? Não tens nenhum desejo?

A sombra: Nenhum, exceto, talvez, o que o "cão" filosófico desejou do grande Alexandre: sai um pouco da frente do sol, está muito frio para mim. 

O andarilho: Que devo fazer? 

A sombra: Anda sob esses pinheiros e olha para as montanhas em torno; o sol se põe. 

O andarilho: Onde estás? Onde estás?"

[Nietzsche, "O Andarilho e Sua Sombra", diálogo final, 1880]

domingo, 22 de novembro de 2015

Castrados

Uma ex-aluna compartilhou no facebook uma postagem de uma página que faz proselitismo da castidade nos namoros adolescentes ("Namoro com propósito" é o nome da página) em que havia uma citação atribuída a Caio Fernando Abreu.

A citação é a seguinte: 

"Insistir naquilo que já não existe é como calçar um sapato que não te cabe mais: machuca, causa bolhas, chega à carne viva e sangra. Então é melhor ficar descalça… deixar livre o coração." [Caio Fernando Abreu]

Achei tão curioso uma página "cristã", que faz essa propaganda de castração das pulsões dos adolescentes, se utilizar de uma mensagem profundamente anti-cristã... tal qual o próprio Cristo crucificado: "Meu deus, por que me abandonaste?", que deveria ser lida: "Meu ídolo, por que você não existe mais? Nós o matamos? Ou você nunca existiu de verdade? Por que minha ilusão não se sustenta mais?"

Aí está uma coisa que me tem chamado a atenção recentemente: como o senso comum cristão ignora solenemente essa passagem da crucificação, tomando Jesus por um fraco qualquer, que tremeu quando lhe atravessaram os pregos. Quando, pelo contrário, nessa interpretação deveras travessa, é precisamente este o grande momento do mítico Cristo.

A mensagem da citação supostamente de Caio F. Abreu e do Cristo crucificado é, fundamentalmente, a mesma: descalce o sapato apertado, desça da cruz na qual te pregaram; aquilo no que insistíamos já não existe mais (ou nos apercebemos nunca ter existido...); não há, em absoluto, nenhuma razão no sofrimento; apesar de, sobretudo, a "dor profunda enobrecer". Lembrando novamente Nietzsche, para quem Jesus fora "o mais nobre dos judeus".

Ora, não é justamente nisso em que está assentado o edifício histórico do cristianismo: inverter a lógica por trás de tudo o que pregava aquele que morreu pregado? Nas entrelinhas, nos dizem há dois mil anos: "Pequemos um pouquinho de vez quando! De qualquer forma, o domingo de missa, o culto evangélico, ou qualquer bobagem como penitência nos irá redimir e limpar nossa consciência!"

De minha parte, nunca frequentei essas naves escuras, essas máquinas de lavar consciência, esses "túmulos e monumentos fúnebres de deus" a que chamam de Igreja; sempre me pareceu um espetáculo horroroso de profunda hipocrisia. Pobre daquele ingênuo que morreu pregado! Tivesse ouvido Zaratustra e ficado no deserto, teria aprendido a rir e abjurado da sua doutrina.

quinta-feira, 19 de novembro de 2015

A Última Hora do Dia

Por que será que, para onde quer que eu olhe, enxergo honestidade apenas na última hora do dia - aquela imediatamente antes da meia-noite? Por que reconheço mais humanidade nos gritos, suspiros e gargalhadas trôpegas pelos becos do que nos sóbrios gracejos, lamúrias e frustrações mal disfarçadas do horário comercial? 

Por que será que tratamos a honestidade como tratamos a música; o sexo; a atividade de aprimoramento físico; a leitura como aprimoramento espiritual; a diversão que eleva, mas não distrai; a alegria que justifica, mas não legitima a dor: como aquilo que merece apenas o que sobrar do nosso tempo de não-labor? Ó, com quanto cansaço não impregnamos tudo aquilo que redime a existência! Ainda assim - tal qual a arte no aforismo 170 do "Andarilho e Sua Sombra" - esses elementos da vida não nos abandonam à nossa própria miséria: o que é um traço denotando sua nobreza. 

Na falta de metais mais nobres, tampas de cerveja tornam-se as insígnias da nossa liberdade - "in vino veritas": há alguma verdade aí; uma verdade ébria, deveras. 

Talvez no dia em que não mais necessitemos perceber a escassez para mensurar o valor daquilo que é bom, então, tudo isso que hoje escondemos do olhar terrível do ídolo labor, que exige sempre, como ofertas e sacrifícios, a produtividade, aparecerá para a luz do sol de um formoso meio-dia, ocupando o lugar de destaque na nossa rotina, habitando uma sombra generosa da árvore da vida. Para tanto, tudo aquilo que é excesso e supérfluo na nossa própria natureza deverá amadurecer, ser fruído e, quando necessário, apodrecer para lançar à terra aquilo que por ele é escondido, que gera o novo: a semente.
Que esse dia luminoso dure apenas uma fração do relógio despótico - que seja! Que é o relógio para medir o tempo daquilo que importa na vida?! - mas que o seu júbilo, que é o mais elevado, possa redimir também a inteira existência presente.

sábado, 14 de novembro de 2015

"Das Coisas Primeiras e Últimas"

Quando o ocidente recolher seus tentáculos econômicos que sugam os recursos do mundo; quando recolhidas também forem as suas garras que movem uma política externa criadora de guerras e pequenos terrores incessantes por toda a face da Terra; quando o presidente Hollande deixar de sujar (ainda mais) o nome do socialismo com seus movimentos políticos; ainda assim estou certo de que não viria aqui prestar reverência às cores símbolo de um Estado Nacional imperialista - como o é a França. Compreendo os contornos deste gesto de empatia - colocar as cores na foto de perfil - como sendo um impasse para a ação política consciente. Ainda assim louvável - poderia ser pior. Mas proponho algumas reflexões:

Monumentos de instituições no mundo todo iluminados de azul, branco e vermelho, como fosse um arranjo orquestrado... Não posso; é muito descarado, não me permito seduzir pela ideia da solidariedade casual aí. Ofende a minha inteligência.

Desde quando os americanos derrubaram aquelas suas torres em 2001 temos vivido reiterados espetáculos de mobilização afetiva da humanidade inteira - desde aquela transmissão ao vivo de 2001 até hoje, com essas cores da bandeira da França. Para tanto, é deveras prático que os meios de informação do ocidente sejam monopólios econômicos gananciosos...

É tudo muito bonito demais. É muito emocionante, demasiado humano - como pode parecer errado? Eu que devo estar sendo muito paranoico.

Nós temos aqui embaixo do nosso nariz a mais monumental tragédia sócioambiental da história dessa terra triste a que chamaram de Brasil - onde foi parar o direito à informação?! Que seria de nós sem a internet...

Algumas pessoas morreram de forma violenta: que lástima. Qual a origem - que se sustente factualmente - do evento que resultou nessas mortes? Quem vai me dar garantias de que foram meia dúzia de lunáticos movidos por preconceito religioso? A imprensa? Essa mesma que, no caso do Brasil, omite vergonhosamente as informações de outras tão urgentes questões?! Quem vai me garantir que não foram agentes do serviço secreto francês que, maquiados, assemelharam-se a caricaturas do fanatismo religioso islâmico, dando fundamentos para a declaração de Guerra oficialmente emitida pela França contra o Estado Islâmico/ISIS? O QUE É O ESTADO ISLÂMICO/ISIS? De onde veio? Como brota uma organização militar paraestatal no meio do oriente médio - virtualmente ocupado pelos americanos desde 2003 - assim, do nada, e aterroriza o seu próprio povo e o europeu?

A Rússia vem bombardeando há alguns dias alvos do ISIS na Síria. Para mim, esse atentado na França é um fantástico pretexto para a OTAN disputar a carcaça do ISIS com a Rússia - e ao povo Sírio desejo a sorte de que não se afogue na saliva de tantos predadores!

Reiterando: O que é preciso ser feito para que pessoas no mundo todo deixem de morrer de forma violenta - não natural? Por que razão algumas mortes mobilizam mais do que outras? Essas são as primeiras e últimas questões que me mobilizam até aqui.

Um Segredo Que Ofende

Um segredo que ofende: no fundo, em alguma fenda obscura, os compassivos invejam a força daquilo que faz sofrer, queriam tê-la para si.

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Felicidade Perene, Alegrias Efêmeras

Olhar para cada dia e dizer: como és linda, Terra, e jamais quereria eu outra vida que não esta! Abençoar o acaso e fazer de tudo degrau ou escada - ou ainda escalada - para elevar a si mesmo. Quantos dominam essa alquimia dos afetos? Poucos, deveras - e isso pouco importa: é preciso saber desviar o olhar daquilo que suja, que enoja, que polui a face da Terra com sua eterna impotência, seu veneno mesquinho destilado a partir da incontornável insatisfação consigo mesmo.

Importa eu: fazer da minha existência uma felicidade perene - que comporta solenemente umas tantas desventuras; sabe aceitar umas tantas frustrações; e tem fígado para digerir até mesmo alguns amargos remorsos - e, no entanto, satisfaz a si mesma, sente-se igualmente plena com as tantas alegrias efêmeras - algumas não duram mais que o desabrochar de meia dúzia de rosas - que encontramos pela vida; com os bons encontros; com a paz de espírito degustada na solitude, na natureza; com o sentimento de fortalecimento do corpo; com as amizades que nos elevam.

Para mim, é este o ensinamento do eterno retorno de Nietzsche: viveria a minha vida até aqui novamente por infinitas vezes - eu honro minhas experiências a partir do momento em que aprendo com elas; eu tenho orgulho, pois, exercitei no mundo a minha vontade -, todavia, daqui pra frente, vou fazer ainda melhor, vou ser ainda mais leve e forte. Para tanto, para tal grandeza na saúde, são imprescindíveis alguns mergulhos em algumas de nossas pequenas doenças, deveras - que melhor forma há para exercitar nosso sistema imunológico?

Oxalá Nietzsche seja reconhecido como um precursor de uma filosofia prática da nutrição!

terça-feira, 3 de novembro de 2015

Bom Gosto

Aqueles que não são capazes de me compreender, que ao menos o sejam, por bom gosto, de me admirar. Ainda que para mim seja difícil perdoar as pessoas dizendo-lhes "muito obrigado!" quando elas, com suas boas intenções, interpõem-se entre mim e meu orgulho. Os outros - ignorem-me e silenciem-se quanto a mim: evidenciem, assim, o seu mau gosto!

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

A Minha Coragem

Por vários momentos ao longo deste ano eu estive sob uma sombra tenebrosa - embora visse em volta o dia quase sempre luminoso; uma vida quase sempre suave e doce - tanto que tomo café sem açúcar, para não arruinar-me o estômago. Lançando o olhar aos céus, eu percebia uma silhueta contra o sol, quase como um eclipse: algo como um anjo ou um demônio de largas asas - pretas como a mais alta noite; podia jurar sentir o movimento do ar quando passava suas asas por sobre minha cabeça - deveras, podia ouvi-las, como se ouve a natureza inteira celebrando a vida numa noite de verão. Ele voltou há pouco mais de uma semana, me acordando de um sonho, quando tive uma inquieta manhã de sábado. Tem sido meu hóspede mal-educado desde então: entrou sem pedir licença na minha casa. Há exatas duas noites ele dorme no quarto comigo, vigiando meu sono. Nesta noite sentou-se na cama ao meu lado. Hesitei, contudo, superando meu pavor, dirigi-lhe a palavra. Segue então a nossa conversa: 

J: Quê fazes aqui?! Por que não me visitara antes este ano? Por acaso faltara-lhe coragem?

A/D: Quê sabes tu da coragem? Mal conseguiste abrir a boca para me dirigir a palavra. Pois saibas apenas que ainda não era a hora de falar-te. Ainda não eras maduro o suficiente. Quis ver-te em febre, quis ver tua força, quis ver se ainda te acendem as flechas do desejo.

J: Pois bem! Já estou caindo de podre, já fervi de febre, já sou quase osso e músculos com o mínimo de gordura - o melhor do corpo que tive até aqui em minha vida -, e minhas flechas do desejo... com elas incendiei o horizonte! Poderias fazer-me o favor de me levar agora?! 

A/D: Não. Ainda não é a hora de levar-te comigo. És pesado demais. Tua vaidade plúmbea não me permitiria arrastar-te para outro lugar que não o Tártaro - não és capaz de destilar outra coisa que não rios de rancor? Quero ver-te leve ainda. Pois, eu sou a tua coragem. Eu vim te ensinar a te elevar-te a ti mesmo, nem que para isso precise me utilizar dos espasmos musculares do pavor que eu te causo! 

J: Elevar-me?! Para onde mais devo subir? Morei por dois anos em uma caverna no quinto andar de uma montanha no Guará... De lá saí, pois, já havia me enfastiado de um ar tão puro e de uma solitude tão terrível! Quê posso eu querer nas alturas?! A concupiscência me envergonharia! A solidão me é agradável, mas o abandono e o desprezo... estes são impossíveis de se superar!

A/D: Confundes a altura com a concupiscência? E te envergonharias porque és, em segredo, um concupiscente! Pois, então deves afundar nos teus afazeres e distrações e deixar-me em paz! Não mais me chame do lugar de onde vim! Que o abandono te faça fumegar e te entorte - quem sabe não adquirirás com isso a direção certa para tuas flechas - se é que serás capaz de ainda guardar algumas contigo!

J: De qualquer coisa que encontro nas minhas caminhadas na natureza, faço minhas flechas - ainda sei, de alguma forma, honrar o sentido da Terra. Infelizmente, preciso de ti! Meus deveres oprimem meu peito de maneira terrível. De quê pode ser feito tal coração, que ainda resiste a uma pressão que esmagaria três quartos da humanidade?! E, em todo o caso, suspeito de que aqui não mais haja um coração, senão algo que se assemelhe a uma tâmara seca: doce e suave, contudo, inerte... Minhas obras me obrigam a permanecer vivo. Esta é, hoje, a obrigação mais assustadora. Minha arte e minha filha: como poderia despedir-me da Terra deixando tantos dependentes sob minha responsabilidade? Pois, já não me anima uma existência em débito comigo mesmo...

A/D: Tu és nobre e esta não deixa de ser uma nobre preocupação. Todavia, o que me diz é uma nobre tolice: cada criatura é responsável por si mesma. Tua arte e tua filha - criaste muito de algo novo: cada qual trilhará seu próprio caminho rumo a luz. Quanto a tua filha, ainda no útero há competição entre os espermatozoides; o óvulo fecundado ainda haverá de vencer o sistema imunológico; o ph; a flora biótica do seu ambiente de nascença; e vencer a própria dependência da mãe e do pai, enfim. Não seja como pai o que fora como criança e jovem - pois ainda quero ver-te homem: um amargo rancor da ausência do teu pai e da irascividade da tua mãe - perdoai as crianças assustadas e mal crescidas estampadas em seus rostos! Isso não me custa nada te lembrar. Quanto a tua arte: para ela, são necessários os ouvidos certos. O acaso pode ter te trazido alguns; todavia, não te envergonhes de forjá-los tu mesmo!

J: Disso eu bem sei... em todo o caso, eu sei que preciso viver por, pelo menos, mais dez anos - para poder prover minha filha de uma sólida formação intelectual e psicológica - saúde, conforto material, e afetos alegres ela já tem -; para poder registrar e publicar as minhas obras. Mas, quando reflito nos meus últimos dez anos, vejo com desânimo tal empreitada: demorei, no mínimo, oito anos para ser honesto com os meus mais profundos sentimentos e, agora que finalmente o fiz, me sinto como que um principezinho atordoado, perdido no deserto... Ao menos no passado eu era um adolescente - esse ser cuja carne é embebida em esperança. Quê resta a mim agora? Aprender a decair com alguma elegância e honestidade; ser feliz? Já não tenho tantas ilusões; tentar? Já não sei se é producente gastar aí as minhas forças.

A/D: O certo é que o deserto deverá ser tão grande quanto mais elevadas as tuas esperanças. Bem sei que aprendeste na filosofia a não caluniá-las. Seu peito já bate mais calmo - vê? Foi bom colocar a conversa em dia; botar as coisas pra fora... Toma o tempo necessário para as coisas: hoje choveu todo o dia; amanhã e depois abrirão as flores e amadurecerão os frutos das árvores - tu mesmo testemunhaste isso com aquelas rosas amarelas. Ouve? É o silêncio do teu coração que agora bate em paz. Quê são dez anos? Quê seria da tua vida se eu te levasse comigo agora mesmo rumo ao teu ocaso? Ao fim e ao cabo, seria a mesma passagem, do pó ao pó - escolha o que neste ínterim possa tornar essa viagem um tanto mais agradável - está ao seu alcance. Tome da música o que pode ajudar-te agora: respeito ao ritmo - nem acelerar o compasso, arruinando o andamento do arranjo; nem diminuí-lo até a inconsistência da harmonia e da melodia. A vida é uma música. Sem ela, que outra coisa aquela seria, senão um erro? Bem o sabes tu! Mas teu medo te impede de me convidar a deitar contigo na cama e sermos uma só carne; uma só voz cantando a mesma música. Livra-te dessa vaidade rancorosa! - assim falo eu ao teu orgulho. Sejas transparente como a água mais cristalina e deixe que o mundo perceba se és ou não profundo - quê importa a ti o que julga o mundo?! Conhece-te a ti mesmo! Torna-te quem tu és!

J: Se algum dia te fui ingrato, sei que és grande o suficiente, tens asas com a envergadura necessária para me acolher em perdão. Tu és um anjo e "jamais ouvi coisa tão divina...". A cama é mais dura do que aquela a que estás acostumada - e um tanto mais apertado o espaço, deveras; aqui adormece como um anjo também a minha filha - contudo, é uma honra recebê-la na minha casa. Bem sei que meus carinhos podem assustar-te: não quero com eles erigir tua prisão. Afasta minha mão com a tua, se necessário for para a paz do teu sono. Tu que trouxeste-me de presente a minha felicidade: que outra coisa teria eu a dizer-te agora senão "eu te amo"? Pois, eu te amo, ó minha eterna companheira!
Agora vamos dormir, eu e a minha coragem. A experiência me recomenda dormir mais de oito horas para recuperar minhas forças. Vejamos o que será a minha sorte a partir de amanhã. O acaso - traga-me o que trouxer - eu o abençoo.

domingo, 1 de novembro de 2015

Cronícula

Publico aqui, neste recanto enobrecido da rede mundial de computadores, este texto do meu irmão, Sérgio, que o enobrece ainda mais. Deleitemo-nos, pois:

"Enamorou-se logo com a primeira pessoa que lhe mandou nudes.
Não imagens das próprias intimidades.
E sim com quem lhe respondera com a palavra "nudes" ao pedido.
Tinha verdadeira tara em pessoas bem humoradas."

Sérgio Berquó.

Um adendo: que verme rói o cérebro dos nossos caros hodiernos, esses espantalhos desprovidos de conteúdo? Como alguém é incapaz de se aperceber do ridículo da institucionalização dos "nudes" numa relação? Essa gente - é bem verdade, não poderíamos esperar muito deles em qualquer aspecto - não entende nada de erotismo!

sábado, 31 de outubro de 2015

A Coragem da Minha Mãe

Já escrevi aqui sobre o que admiro em minha mãe - por mais odiosa que ela me pareça, de modo geral. Hoje quero me alongar um pouco neste tema.

Há uma indiscutível carga moralista lançada contra aqueles que são pais separados em nossa sociedade. 

Sobre as mulheres, o ranço conservador de sempre - e, deveras, este ainda é o caso em que ocorrem mais ataques devido, principalmente, ao fato de ser o Brasil o maior país cristão do mundo. Muitos abjuram do cristianismo, mas permanecem agindo como os sacerdotes e os crentes pelo resto da vida - seus afetos funcionam, do ponto de vista fisiológico, da mesma forma. Logo, sofremos toda a espécie de ataques, de origens que não se circunscrevem apenas dentre os formalmente crentes.

Contra nós homens, há, igualmente, uma moral mesquinha, ora travestida de feminismo ~pára-que-tá-feio, ora qualquer outra canalhice e indigência intelectual - por mais que, objetivamente, cada relação de pais separados funcione de modo distinto - o que interessa aos achacadores não é compreender cada caso e contribuir para o que deveria ser, em tese, o objetivo de qualquer união: a reprodução da sociedade, representada pelas crianças. Não, nada disso! É importante sempre encontrar culpados e pregá-los em suas respectivas cruzes. "Usemos a imaginação! Não é possível que esses homens e essas mulheres não possam ser culpados de algo!" - assim pensam os que ofendem à natureza, pois, que nos provera de neurônios.

Em qualquer caso, é preciso fazer os separados pagarem por depor contra os dois extremos moralistas e por atentarem contra a sagrada instituição da família. Particularmente, estou convencido de como essa monstruosidade a que se chama de família - contra toda a moral hodierna que quer abrigar a todos nesse conceito carcomido - deve desaparecer da face da Terra, em absoluto (sob uma perspectiva do futuro).
É preciso que a nossa coragem, a dos separados, de afirmar a sua vontade na vida enquanto indivíduos seja - ou que ao menos se tente ser - castrada, atacada, vilipendiada, violada.

Eu nunca tive vocação para carregar cruz. Nunca fui um cristão orgânico - minha vida nunca se reduziu a procurar culpados pelos males do mundo; possuo força e vontade criadora e toda essa ladainha crente me causa asco e contra eles cresce a cada dia a profundidade do meu desprezo. Cada mau agouro que os ventos trazem aos meus olhos e ouvidos - eu faço o esforço necessário para distrair meus sentidos; nem os respondo: deixo que as leis soberanas do universo façam com eles retornem aos seus emitentes na forma de afetos tristes. Pois, essa gente é absolutamente incapaz - fisiologicamente falando - de se afetar de outras formas.

Até encontro motivos para me alegrar com tais situações: contribuí para que gente odiosa possa destilar seu veneno! No entanto, devo alertá-los: a picada da víbora não mata Zaratustra - desperta-o e lembra-lhe ainda ser longa a sua jornada!

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Para As Verdades, Uma Distância Segura

Por que razão os hodiernos se apegam tanto ao dizer olho-no-olho? A bem da verdade, que outra coisa é esse momento senão o pai da mentira?
Aquele apego só se explica por duas vias: incapacidade intelectual ou desonestidade - ambas operam de formas muito semelhantes, deveras.
A verdade precisa de uma distância segura para ser dita - há algo mais incômodo e ofensivo para a maioria das pessoas do que ela mesma? A fúria que inspiraria recomenda a qualquer pessoa que intenta ser honesta a tomar distância
Qual outra razão para o desenvolvimento das tecnologias de comunicação - mormente a internet?! A instituição de uma distância segura para a verdade!
Quem exige o olho-no-olho o faz por puro ardil: sabe ser um dispêndio de energia muito grande dizê-la de fato neste contexto e, em quase todos os casos, a força dessa verdade se quebra no instante seguinte, se perde como um raio que pende de uma nuvem carregada. Um desperdício de verdades cuja carga poderia mover moinhos.
Esta proximidade, este face-a-face, é essencial, no entanto, para que sejam ditas as mais forçadas mentiras - sendo que a mais bela delas é: "eu te amo".

sábado, 24 de outubro de 2015

O Rio Bacalhau


NÃO É O RESULTADO DO ~aquecimento global~..! 

Senão do nosso modelo econômico, da nossa ignorância e estupidez, que mataram o rio Bacalhau!

 Onde eu aprendi a nadar, a pegar cascudo e piaba, a pular da árvore na água, a nadar contra e com a correnteza, a sair do rio quando chove e vem a tromba d'água; onde eu vi mico, cobra, um sapo enorme - preto com mancha amarela, fantástico! -, onde eu aprendi a pular e correr por sobre as pedras, onde eu aprendi a contemplar, respeitar e ser uno com a natureza, enfim...

Pra falar a verdade, eu nem lembro de quando eu aprendi a nadar, de tão cedo que foi! A minha memória afetiva hoje sofre o mais ferino ataque ao saber de tão lastimável fato. Perdoem-me, amigos! Não pude evitar pensar tão alto!

"Quando eu pulava das pedras no rio Bacalhau de água cristalina
E engolia piabinhas vivas pra aprender a nadar, eu já sentia
Que àquela terra eu pertencia..."

domingo, 18 de outubro de 2015

Dia dos Professores

No começo desse ano eu lamuriava sobre minha vida... hoje, mais calmo, mais decantado, posso perceber alguma beleza no acaso do meu destino. Segue-se o que publiquei no facebook no dia dos professores:

Há uns 10 anos, quando no meio do ensino médio, eu já havia decidido o que faria da minha vida produtiva: ser professor. Foi um grande lance de honestidade para comigo mesmo. Não é uma questão de diminuir outras carreiras por proselitismo da minha: cada um que escolha seu caminho de vocação e colha seus frutos.
De minha parte, não posso evitar de falar do imenso orgulho que transborda para além de mim em relação - não ao que se espera da educação pública, dado o seu contexto estrutural e seu papel político na reprodução da sociedade - mas, ao que eu faço nesse contexto e nesse espaço político; ao quanto eu aprendo muito, demasiado além do que ensino; às possibilidades de reconhecimento do espaço da vida e de reconhecer-se no mundo que a educação, num permanente diálogo, proporciona.
O reconhecimento dos meus alunos - mais do que o despeito de quem quer que seja - e a minha autocrítica atestam que aí eu fiz a escolha mais certa para a minha vida até aqui.
Hoje estamos em greve devido ao absoluto descompromisso do governo para com os acordos firmados com a carreira, garantidos em lei - e que é o mínimo para a construção de uma educação melhor em qualquer sentido! Se nem o mínimo nos é garantido, não podemos esperar grandes mudanças nos aspectos mais gerais e estruturais que determinam a forma, conteúdo e função da educação.
Porém, quando me recordo de todos os momentos magníficos que pude experimentar nesses últimos 3 anos, sou arrebatado por um jubiloso anseio de estar em sala de aula novamente, onde eu mesmo me reconheço como um eterno aprendiz, amador, amante da vida. Se algo desse sentimento puder ser ensinado, já cumpri com alguma nobreza o meu papel. Grato, amigos professores e alunos, pela companhia nessa senda!

Estética e Ideologia: Uma Digressão Sobre Mim Mesmo

Ontem à noite assisti ao "O Guia Pervertido da Ideologia", filme de Žižek com direção de Sophie Fiennes.

Ao longo de todo o documentário ele tece comentários sobre a forma, a estética como uma mensagem em si mesma - "pré ideológica" -, apesar do discurso que lhe traduz em ideologia. Citou a 9º sinfonia de Beethoven, que foi e é usada por todo mundo: dos nazistas aos democratas cristãos; dos comunistas aos democratas, em diversos contextos, como "pacote" de sua ideologia.

Outra ideia que me chamou atenção foi à referência ao "Grande Outro", uma instituição que atua sobre a psique de forma autoritária, impositiva, para a qual nós devemos prestar contas, nos justificar, nos confessar, que nos redime ou nos condena, etc. Todavia, ele, como psicanalista, coloca que essa instituição, objetivamente, não existe - somos nós, com nossas necessidades psicológicas, nossas fraquezas, dúvidas, dificuldades em afirmar nossas vontades que a criamos.

Para o Žižek, a grande mensagem do próprio Cristo crucificado foi essa: "Meu Deus, por que me abandonaste?", dentre outras referências ao Livro de Jó e às falas de Jesus. O que o leva, Žižek, a afirmar que apenas através do Cristo é possível criar-se um legítimo ateu - isto é: alguém que afirma a inexistência de uma instituição maior do que nós mesmos, que impere sobre nossas vontades e escolhas. Em contraposição aos "ateus crentes", que negam o mito religioso, mas elegem outros elementos para ocupar o espaço do "Grande Outro": a evolução, a ciência, etc. - ou seja, uma visão 'desistoricizada' da crítica à religião, que não percebe que o mito existiu apenas para cumprir essa função psicológica, etc. O que se aproxima da ideia Nietzscheana de que "Deus está morto e fomos nós que o matamos!", de um deus enquanto um "imperador dos desejos", ser inaceitável na modernidade, etc. Não é novidade pra ninguém que o edifício milenar erigido pela Igreja Católica - e reformado pelos protestantes - guarda a mínima relação com a figura mítica de Jesus Cristo, propriamente. Inclusive, eu, que nunca tive uma educação religiosa formal, só pude ter alguma simpatia pela figura de Jesus, o Cristo, a partir das considerações duais de Nietzsche ("o mais nobre dos Judeus", em algum lugar do "Humano, Demasiado Humano", 1877). Mas não é sobre isso que quero falar aqui.

Há uma belíssima passagem do "Gaia Ciência" (1882): "Que são essas igrejas senão túmulos e monumentos fúnebres de deus?" Isso vai dialogar com a minha digressão a partir daqui.

Como vocês já devem saber, eu sou um artista muito antes de ser professor - e talvez até por isso eu exerça essa que é uma profissão cênica, fundamentalmente. Ao longo de 2013, minhas experiências pessoais foram projetadas para além de mim numa porção de músicas que juntei no álbum abaixo. É um conjunto de 10 canções carregadas de teclados sombrios; de canto sussurrado; um ou outro momento de gritos e de guitarras distorcidas; de cores escuras escolhidas para a arte do álbum; e - vejam só! - uma referência à canção "Infância na Cidade de Goiás" na foto da Igreja Matriz da cidade, que a gente havia tirado em uma das últimas viagens para lá.

Pois bem: este é o "invólucro" estético da minha mensagem, que não vem ao caso aqui. Como compositor amador - quero dizer: objetivamente, alguém que não domina conscientemente a psicoacústica, não possui estudo formal de composição, etc. -, essas escolhas estéticas são feitas inconscientemente. Eu estava consciente de que passava por uma depressão profunda, mas esses elementos não ficavam claros na hora de compor. O que quero dizer é: eu estava imerso na minha ideologia - tateando as paredes de um quarto escuro.

Refletindo sobre as colocações do Zizek, eu tive um insight luminoso, que me aterrorizou madrugada a dentro: nesse álbum eu estava realizando um funeral do meu "Grande Outro". Todos os elementos estéticos apontam para isso: a escuridão, a sobriedade, os teclados monocórdicos, as dissonâncias, os gritos de horror pela morte de um ente tão querido - a primeira faixa eu intitulei "Boa Morte"! Eu estava lamentando a percepção do meu inconsciente de que ele é, fundamentalmente "órfão e ateu" (li isso em alguma postagem do Bruno Cava, acho que sobre o curso do Anti-Édipo).

Há um outro aforismo interessantíssimo do "Opiniões e Sentenças Diversas" (1878) em que Nietzsche - que percebia a ideologia da forma estética, isso se vê em cada aforismo seu de crítica artística - comenta do uso póstumo da obra de Beethoven:
"A execução realmente "histórica" falaria de modo espectral para espectros. - Honramos os grandes artistas do passado não mediante o estéril receio que deixa cada palavra, cada nota exatamente como foram colocadas, mas por ativos esforços em ajudá-los a repetidamente voltar à vida. - É certo que, se imaginarmos Beethoven retornando subitamente e presenciando uma de suas obras na mais moderna forma de animação e refinamento nervoso, que contribui para a fama de nossos mestres de execução, ele provavelmente ficaria mudo por um bom tempo, hesitando se deveria erguer a mão para amaldiçoar ou para bendizer, mas talvez falasse, por fim: "Bem, isto não sou eu nem deixa de ser eu, é uma terceira coisa - também me parece algo certo, embora não o certo. Mas atentem vocês para o que fazer, já que vocês é que têm de ouvi-lo - e quem está vivo tem razão, como diz nosso Schiller. Então tenham razão e me deixem voltar para baixo". (Aforismo 126, "Arte do Passado e Alma do Presente")

Com o "Aeternum Phoenix", eu lancei um pacote ideológico em que lamentava a morte dos meus ditadores internos: o que só pode ser louvável se tomarmos um caminho de celebração por essa morte. Foi o que fiz no próprio álbum de 2013, no vigésimo minuto de "Phoenix Flight": "Cantei as canções que quis, lancei-me assim aos céus/Nas alturas fui feliz rasgando todo véu"; e em 2014 com o "Além de Mim", a minha mais elevada forma de júbilo na percepção dessa liberdade de espírito. No começo desse ano fiz o Iñaron, que tem um sentimento um tanto diverso do anterior; é muito recente, não me sinto em condições ainda de refletir sobre ele, mas é, sem dúvida, um ponto de desenvolvimento geral da minha estética.

Como o
Žižek deixa claro no início do filme, libertar-se da ideologia dói, fere. Quem se apavorar diante dessa dor apegar-se-á à ideologia violentamente até o último espasmo dos nervos! De onde vem a força terrível para assassinar o monstro mentiroso que sustenta nossa ideologia e superar-se a si mesmo, afirmando a própria vontade? Como artista solitário e orgulhoso que sou, devo guardar meus segredos para a posteridade. Mas deixo uma dica: leiam o Zaratustra!

PS.:
A quem interessar possa - a trilogia dos álbuns de 2013/14/15:

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Zelar Pela Abundância Sem Errar Pelo Excesso

Demorei quatro noites para digerir a refeição pesada em que me foram servidos meus afetos tristes, meus desejos incontidos, minhas frustrações; a mim mesmo, enfim.
Lembrei-me de um aforismo de "Aurora": tudo que é bom surge com má-consciência, pois é novo, ataca a tradição e por ela é atacado com ferocidade.
Pois bem: pendurei por sobre minha cabeça a minha própria lei; viver conforme a minha própria vontade, depurando-a.
Foram quatro noites em que minha autoestima duelava com minha autocrítica nas alturas - onde estão sempre, em camadas da atmosfera em que o oxigênio torna-se rarefeito. É bem difícil pensar muito na falta de ar: bem o sabem os que estão se afogando; dependurados na encosta de uma altíssima montanha; em uma aeronave despressurizadas; é preciso a sorte de ter a ideia certa o mais próximo possível de sua consciência e a força necessária para agarra-la.
Ambas, minha autoestima e minha autocrítica, possuem bastante fôlego.
Hoje tenho uma tarde leve; pois já carreguei umas tantas bem pesadas nas costas. Vou embora desse paraíso de volta pra minha nova casa, em cuja porta vou pendurar a insígnia dessa nova fase de minha vida: zelar pela abundância sem errar pelo excesso; ser muito e a cada dia mais; e ter somente aquilo que eu preciso, o que não é muito.

domingo, 11 de outubro de 2015

Para Uma Cura da Vontade


Vi uma imagem ainda há pouco que me causou um estranhamento profundo... De repente, me aterrorizava a questão: como pude elaborar durante tantos anos um tão terrível contorcionismo da vontade; envenenar e enturvar todas as fontes de onde brotam as minhas paixões? Talvez demore ainda muitos anos pra recuperar da atrofia a musculatura do meu desejo. 
Essa consciência meio ruim é mesmo um sinal de que preciso medir - mensurar, pra ser mais preciso - de novo todos os afetos que experimento. Dialogar com uma multidão em silêncio, romper o mais desolado deserto. Mergulhar profundamente em mim mesmo, ainda mais. 
Ainda hoje fui à praia do amor, onde o mar me oferece alguma resistência. Na falta de aparelhos de ginástica, quebrar ondas é um bom exercício de equilíbrio, de tônus abdominal, de fôlego. Ainda quero tentar exercitar minhas asas de chumbo, fazê-las me levar alto num vôo seguro. Todavia, não tenho tido oportunidades: minha vaidade tem se tornado a cada dia mais caprichosa; nem anseia mais se mostrar tanto! Os hodiernos me constrangem; meu orgulho, meu asseio, me impedem de dar um passo à frente. Sugestão? Dormir muito! 

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Apetite

Que visão intranquila do paraíso! Que cena tragicômica: o demente vôo deste pássaro com asas plúmbeas! Permanecesse no solo qual pavão, que exibe tranquilamente suas virtudes sem precisar mostrar-se naquilo que não sabe fazer! Porém, aquilo que tenho demais humano, a minha vaidade, me compele a alçar vôos. Me ataca o orgulho: viver tendo asas e não as usar. Como todo exercício, a prática determina o domínio da fortuna, o horizonte de possibilidades de sucesso e fracasso. Melhor sorte na próxima!

Pois bem: farejamo-nos, permitimos que o nosso aroma fosse degustado, porém, não nos deleitamos no nosso banquete. Talvez a sua imperturbada aparência me fosse por demais suave: eu, quem gosto de comida apimentada; ou ainda parecido doce, num momento da vida em que meu paladar, mais do que ter se acostumado, pede pelo amargo. Talvez o meu furioso apetite lhe tenha sido percebido como ofensivo: não me permitiria saborear com a devida medida o seu enternecido sabor. O que devo dizer, não sem profundo pesar, ser uma dolorosa calúnia contra os meus sentidos. Talvez o cheiro de sangue parecesse-lhe por demais asqueroso, terrível, talvez fosse até vegetariana... - eu, que carrego navalhas pra cortar minha própria carne e ofertá-lá crua, temperada com ervas ressequidas. Como abrir o apetite de quem tem aversão ao cheiro de sangue?

Aquelas pessoas com quem convivo em Brasília - que me perdoem a honestidade - me causam nojo. O seu gosto de isopor, de comida congelada, conservada para muito além do prazo que a natureza daria a qualquer alimento saudável, me enoja. Os concurseiros, vergados ao falacioso único caminho possível, analfabetos para qualquer coisa além dos editais; pior: os concursados, como cadáveres conservados em formol, desfilando como múmias ansiando por vida eterna: como me nutrir de gente dessa espécie? Não sou um inseto: eles que reviram o lixo e de qualquer resto podre fazem seu alimento!

Não quero ser confundido com outra coisa que não um leão, uma serpente ou uma ave de rapina: uma soberana confiança de si, um profundo desprezo por aquilo que não lhe serve de alimento, uma espreita e um bote certeiro, um ritual que enobrece a sua refeição.

Foi isso a vida? Ótimo, mais outras várias vezes!

domingo, 4 de outubro de 2015

Questões Latentes Para Uma Hipergeografia

Nietzsche faz digressão convergente no "Humano, Demasiado Humano": para ele, enquanto persistir a força do mito religioso persistirá o mito que fundamenta o Estado enquanto forma de organização de determinado recorte do espaço; que legitima a castração, perseguição e neutralização daquilo que diverge do interesse da "sociedade" - um pacto entre "sócios" (eu não assinei nenhum contrato. E vocês?), etc, etc.

Não à toa ele dedica o livro aos "espíritos livres" e em homenagem a Voltaire, encampando a batalha ao lado dos iluministas.

Dialogando com a citação do Krishnamurti, o que é um "governo" - o Estado, melhor dizendo - senão uma hiper-empresa? Um corpo que superpõe outros corpos e organismos. Ou, porque uma empresa ou família ou qualquer espécie de organização social brasileira é diferente de uma chinesa?

Mais ainda: que espécie de organização do espaço determina um organismo transnacional - que opera com seus órgãos por sobre Estados-nacionais, nos seus interstícios? Como as corporações - e a ideologia corporativa - pode reproduzir-se nos mais diversos contextos geográficos?

Chamemos esse expediente de "imperialismo" por inquietude e falta de imaginação; por embasbacados que estamos dada a complexidade de tal arranjo de poder nos espaços. Todavia, é isso o que queremos fazer com os nossos corpos - adaptarmo-nos ao projeto político das corporações? Responder à pressão com nossos afetos negativos, regalando-nos na nossa impotência?


segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Lascivo

Uma palavra a favor do mais mecânico amor-próprio: quanta alegria há em saber dar prazer a si mesmo! Quantas transas eu não trocaria hoje - de uma mais madura perspectiva - por uma paciente e caprichosa masturbação. Quanto sexo feito com sono, cansaço, embriaguez, vergonha, vaidade e tantos outros desenganos... quanto sexo mal-feito, desonrando o sentido da terra! Melhor seria não tê-lo feito! A honra, que nos é comum e perene, nos impedia de regalar-nos ante os outros com tais experiências desmedidas da luxúria. A honestidade para conosco nos embebia em má-consciência... Melhor seria ter ficado em casa aquele dia!

Bem sei como sentem-se os casados, ou os que estão juntos há longo termo, ou os que têm demasiada intimidade e já enfastiaram seu paladar do sacarino (e ludibrioso) "conhecerem-se um ao outro": são como cães num canil. Uns vulgares, em eterno cio; outros, desditosos, já castraram-se a si mesmos. Uns satisfazem-se com a ração que lhes é oferecida sempre, têm horizonte restrito e contentam-se com pouco, falta-lhes imaginação, talvez; outros tremem o corpo inteiro quando lhes farejam estranhos e, assim que podem, correm desesperados de volta para o seu refúgio, e depois ainda latem desdenhando do seu próprio desejo pelo desconhecido; outro ainda transborda de anseio, está salivando o tempo todo, sempre à procura de algo novo que satisfaça a sua furiosa luxúria, quer seja por um instante: noutro momento ela voltará ainda mais intensa. 

Um ladrão ardiloso que lançava peças de carnes nobres para distraí-lo a este último se aproveitava do momento fortuito para invadir aquela casa e furtar as joias ali guardadas, que por tanto tempo foram tidas como tesouro de família. Até que um dia não restara mais nada para roubar: foi se embora o ladrão e o cão, de hipertrofiado desejo devido à dieta a que fora posto, foge de casa em busca de novos sabores e texturas. Como apenas os cães, esses melhores amigos dos homens, sabem fazer, salta para fora do canil em que sua vontade e força eram meros instrumentos da vontade alheia e vai latir, uivar e revirar latas para satisfazer a sua própria, em um vir-a-ser cão selvagem.

Este é um grande signo da liberdade, que antecipa muitos outros.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Impotentes

Um pouco mais sobre aquele feminismo decadente, o feminismo ~pára-que-tá-feio~:

1. "Ele não quis desconstruir seus privilégios" - Significa: ele não quis ser meu escravo. 
2. "Ele está me silenciando" - Significa: ele expõe uma perspectiva divergente sobre o assunto. 
3. "Ele ignora minhas vivências" - Quer dizer: ele não fetichiza um suposto "dado empírico" para analisar uma teoria, uma ideia que justifique determinada perspectiva em determinado contexto. 
4. "Se ele tem problemas com a mãe, já é suspeito!" - Estão há alguns milênios atrás de Nietzsche, Freud, Foucault, Deleuze, Guattari e o Anti-Édipo... Ou então, no regime do patriarcado, não são as mulheres que educam as crianças e perpetuam a sua ideologia? O machismo - boo! - é, então, inato nos homens e daí segue-se uma ridícula misandria. Essa gente objetivamente atrai relacionamentos abusivos para confirmarem suas teses.

Este feminismo - um machismo envergonhado de si mesmo - é a desventura intelectual mais triste de nossos tempos! 
Está pareado com um certo movimento racial e de "defesa dos animais", quer seja o que isso signifique, todos guardando muita semelhança com os movimentos de afirmação do cristianismo primitivo. Evocam a culpa, a inação, a ireflexão, uma obediência a uma autoridade sacerdotal - no caso, as "mulheres" e suas "vivências". Na falta de outro melhor, digo-o eu mesmo: de nada adiantam "vivências" se não possuem "inteligências"!

São os insistentes grãos de poeira que grudam nas nossas botas, mas impotentes em parar a nossa marcha!

Nietzsche, Um Comunista

Ou - respeitando a memória de Nietzsche que rechaçaria qualquer rótulo (com toda a razão e não é essa a minha intenção) - porque sou um nietzscheano de esquerda

Em toda a sua obra, do "Humano, Demasiado Humano" (1878) a "O Anticristo" (1889), Nietzsche explicita diversas vezes o seu anti-socialismo. Ele capta nas sutilezas dos discursos e práticas socialistas 1) a apologia a um poder totalitário, centralizador; 2) afetos negativos - vingança, inveja, etc. - que denotavam impotência, o mal dos escravos; 3) e, de modo geral, equiparava os socialistas aos burgueses no âmbito da moral - disputavam ambos o mesmo campo de valores (sobre este aspecto, no início do "Aurora" [1881] há uma breve referência aos camaradas anarquistas). Os burgueses seriam os escravos que se rebelaram primeiro, seguidos no calcanhar pelo proletariado.

A despeito de diversos aforismos que se debruçam sobre estas questões, principalmente no livro de 1878, em toda a sua obra não há uma crítica, nem uma única palavra sequer acerca das ideias de Marx, o teórico que passa ao século seguinte como fundador do assim chamado socialismo científico - um silêncio ensurdecedor.

Aquele que sabe ler as pessoas percebe que, muitas vezes, quanto aquilo em que elas calam, elas mais falam. A proposta de tresvaloração dos valores de Nietzsche não me parece muito distante, objetivamente, da proposta de superação das dicotomias da sociedade burguesa - capital (burguesia) x trabalho (proletariado) - em Marx. Apesar de colocadas de formas diferentes, os horizontes delineados pelas duas perspectivas reservam-se similaridades. Nietzsche vem pelo debate ideal, isto é, moral; enquanto Marx pelo debate material, ou seja, econômico.

O problema do marxismo é que ele se assemelha a uma religião, com cisma do oriente e tudo o mais. Contra todo o senso comum que se apregoou ao longo do século passado nos círculos comunistas, o ideal marxiano - com a liberdade que me permito para interpretá-lo e criticar todo um século de lutas - é de superar aquela dicotomia a partir do proletariado, em um processo histórico - a "Revolução Comunista" - que depura essa classe, quando então, será abolido o trabalho, que é o núcleo do processo de gênese do capital - forma de relação entre as coisas e pessoas com objetivo de lucro, simplificadamente. Deste modo, não haveria mais proletariado enquanto classe - esta só existe em oposição à burguesia. A Revolução Comunista superaria as contradições entre burguesia e proletariado. Mais ainda e em outras palavras: sob o comunismo não existiria o proletariado. O ideal da "Ditadura do Proletariado" é uma interpretação que vem a ser encampada sem o menor pudor a partir de Lênin e a fundação do marxismo-leninismo, que ainda é levado a sério por algumas tarântulas perdidas por entre as estantes de bibliotecas empoeiradas...

Voltando à Nietzsche, para ele há ao longo da história a luta entre duas moralidades: a nobre e a escrava. De forma resumida, ele elogia todos os ideais nobres - força, beleza, inteligência, altivez, gratidão, etc. - enquanto desdenha dos ideais escravos - igualdade (identificada com igualitarismo, a supressão das singularidades), humildade (identificada com a mediocridade, a supressão do esforço de superação), etc. Na trilogia "Além do Bem e do Mal" (1886), "Genealogia da Moral" (1886) e "Crepúsculo dos Ídolos" (1887) ele certamente se aprofunda nestes temas, mas não posso comentá-los, pois, ainda não os li.

Em todo o caso, no "Ecce Homo" (1888) há várias passagens que sugerem que Nietzsche não era um conservador - justificador do status quo - ou mesmo um romântico - restaurador da ordem antiga -, mas que o seu elogio se dava à uma ideia de nobreza de caráter. A passagem sobre o "jovem príncipe" do I Reich a quem ele não daria o privilégio de lustrar suas botas é a que melhor ilustra esta interpretação. Há uma bela descrição do filósofo Epiteto - nascido escravo - no "Aurora" que, com determinada reverência, corrobora novamente com aquela visão. Todo leitor nietzscheano honesto sabe disso.

De modo que, para mim, quando Nietzsche nos falava do seu anti-socialismo não é preciso muito esforço para lembrar que o socialismo foi jogado na lama por muitos de seus partidários, o que nos acostumamos chamar de social-democracia. É só lembrar que temos no Brasil o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) e o Partido Socialista Brasileiro (PSB, fundado a partir de uma dissidência da antiga UDN) que eu me declaro anti-socialista sem muito esforço. É reconhecer que as experiências comunistas do século XX - sem julgar moralmente a história, que é soberana - encontraram rapidamente os seus limites circunscritos dentro de si mesmas, e que não devem se repetir. Afinal, seria ou tragédia ou farsa. Para a construção do futuro em comum deverão ser forjados novos instrumentos a partir das práticas dentro das questões latentes da humanidade hoje e em cada recanto do mundo.

Sobre a despeitosa e absolutamente infundada associação entre Nietzsche e o nazismo, deixo um silêncio tumular sob o qual devem revirarem-se os restos mortais de sua irmã, aquela cidadã de bem, boa cristã, quem difamou o filósofo, editando canalhices postumamente e posando ao lado do Führer.

Até aqui - com as leituras do "Nascimento da Tragédia" (1872), "H, D H", "Aurora", "A Gaia Ciência" (1882), "Assim Falou Zaratustra" (1883-5), "Ecce Homo" (1888) e "O Anticristo" (1889) - podemos dizer com segurança - e alguma liberdade poética - que o esforço que Nietzsche fez, em vida, para que suas contribuições fossem reconhecidas levou-o à loucura. Um século ainda é muito pouco para fazer-lhe as devidas honras. Para quem não tem a digestão lenta, capaz de degradar longas cadeias de moléculas de nutrientes, não se recomenda sua leitura. Quem não tem a casca grossa, que não passe perto de sua retórica dilacerante!

Ambas as perspectivas, a do comunismo marxiano e a nietzscheana, são perspectivas para/de ação: a revolução e a tresvaloração. Que todo o esforço de inação, de refrear a reflexão, a crítica, a imaginação e a produção do novo sejam atropeladas pelo trem da história, pela potência da nossa vontade que se amplia! Nietzsche foi caminhando por entre montanhas e praias desertas; Marx por entre fábricas e vilas operárias... não importa mais: a globalização globalitarista ampliou forçosamente nossa superfície de contato. Não nos adianta mais reclamar sozinhos, sectários; de nada adianta ~o povo de humanas ir fazer miçanga~, os intelectuais escalarem suas Torres de Marfim, os corporativistas aparelharem seus sindicatos e reuniões de negociação à portas fechadas... estamos todos conectados numa rede de fluxos de valores - a evolução tecnopolítica do capital financeiro - contra a qual apenas a luta em comum pode fazer frente; para tanto, faz-se necessário um novo mapa desse espaço terrível - uma hipergeografia em que nos reconheçamos enquanto tal. Reconhecer-se em comum: o eterno retorno da diferença.